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UM MUNDO DE FAZ DE CONTA

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 8 de abr. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 10 de abr. de 2024


Montes e vales, hortas e terras amanhadas
Imaginemos o Norte de Portugal

Imaginemos um Mundo de Faz de Conta.

E se os territórios dos distritos de Aveiro, Viseu, Guarda, mais os que ficam a norte do rio Douro fossem uma unidade geográfica étnica e cultural? E se os países que venceram a Segunda Guerra Mundial, num ato de mea-culpa, decidissem lavar as mãos com distribuição de terras a um povo ou religião, por causa da inação e tolerância para com Hitler, quando arreganhava os dentes com apetites territoriais? E se os territórios concedidos fossem os do Norte de Portugal? Se foi Hitler que incinerou um terço desse grupo religioso, porque não deram, também, terras aos outros dois terços de incinerados? Se foi a Alemanha que incinerou esse terço, porque não confessaram as culpas com a cedência de terras na Vestfália em vez do Norte de Portugal? E se... E se...


Mea-Culpa

A Guerra acabou, as nações europeias foram mais uma vez redesenhadas, os vencedores acharam que podiam criar um novo estado para reparar o seu sofrimento, mas também podiam fazer o mesmo com os ciganos... Sofreram, houve famílias inteiras que desapareceram, sobreviveram alguns, havia que reparar os danos, se é que era possível reparar, assim como foram reparadas as nações vencedoras. É justo. Justíssimo.

Foi uma reparação justa carregada com o maior dos pecados capitais: dar as terras de quem sempre lá viveu a quem nunca lá viveu. «Mas eles são originários da terra do leite e do mel.» Pois são. Também os cristãos. Também os muçulmanos. E não há nação nenhuma da Europa que não tenha nas suas origens povos de outras nações. Vamos recriar a Fenícia, a Grécia, Roma, os povos bárbaros do Leste? Não foi isso que Hitler quis fazer ao recriar a pureza ariana? Para isso, criou câmaras de gás e fornos de incineração. Devemos ficar atentos aos que procuram a pureza, seja étnica, religiosa ou cultural. É preciso que se diga que muitos, muitos mais sofreram. Mas só alguns tiveram direito à reparação com terras.


Continuemos a Imaginar.

Como éramos um povo sem voz, decidiram que as terras a norte do Douro e a Guarda era território atribuído a uma Nova Nação; que Viseu e Aveiro era a Terra de Ninguém dos autóctones. Para ocupar a Nova Nação, os poucos que lá havia, e se identicavam com os recém chegados, permaneciam com estatuto reforçado. Como a desproporção era perigosamente grande, tinha de se estabelecer um fluxo de gente vinda de todo o mundo para ocupar o território. Para isso, forçava-se a imigração em massa, e até se aliciava, com a distribuição de terras e outras mordomias. Para as terras e casas com dono, estabeleceu-se um conjunto de ações bélicas na Nova Nação para os obrigar a fugir para locais mais seguras. O regresso era-lhes vedado e as terras e casas passavam a ser propriedade do estado, que as distribuia pelos novos ocupantes. Aos poucos, foram esvaziando os territórios de autóctones. Depois de estabilizados, era preciso continuar com a expansão para novas terras.


Apátridas

Quando os vencedores criaram o estado, esqueceram-se de criar o dos autóctones. O concerto das nações decidiu que eram dois estados: a Nova Nação e a Nação dos Autóctones. A Nova Nação foi criada e os povos dos Autóctones ficaram como apátridas no local onde sempre viveram. Muitos outros obtiveram o estatuto de refugiados e foram distribuídos por outras nações. Os senhores das casas e das terras passaram a viver em tendas e da caridade alheia. Entretanto, foram criados campos de refugiados na sua própria terra. Como eram apátridas sem direitos numa terra de ninguém, foram sendo invadidos pelo povo vizinho com colonatos dispersos e protegidos por muralhas e outras vedações.

Aos poucos, retiraram-lhes os direitos de construção, não podiam explorar os recursos naturais como a água, tinham de ficar dependentes da electricidade e dos produtos alimentares que não podiam produzir, como hortícolas e frutíferos, porque lhes destruiam as colheitas e arrancavam as árvores. Se quisessem comer, tinham de comprar os produtos a quem lhes roubara a terra.

Os colonos beneficiavam de isenções e subsídios, ocupação de terras e casas, podiam desenvolver atividades comerciais proibidas aos autóctones e muito mais. Os ocupantes, para se protegerem, foram treinados e estavam autorizados a usar armas, podendo matar impunemente, se se sentissem ameaçados verbalmente ou por pedras. Nos casos de agressão pessoal, beneficiavam das intervenções do exército com tanques, lagartas e invasão de propriedade, a qualquer hora do dia e da noite, para que ficassem mansos e fugissem para outras paragens, quanto mais longe, melhor. As terras eram de quem as merecia, não dos preguiçosos que as deixavam, forçosamente, ao abandono. Ou propositadamente queimadas pelos colonos com químicos para que as abandonassem.


Se Fosse Contigo, que Fazias?

Se fosses um autóctone de Aveiro ou Viseu, se, por hipótese, isto acontecesse na tua terra, que farias?

Não penses que só acontece aos outros. Imagina-te na Ucrânia, na Cisjordânia, em Gaza. Imagina-te em países da África ou Ásia. Imagina o quão baixo desce a desumanização em cenários de guerra, dos que combatem com e sem razão, a razão dos que acham que têm razão, dos que sofrem com os efeitos do combate.

Imagina uma mãe sem leite para dar ao bebé que lhe morre no colo porque não tem o que comer para fabricar o leite que lhe há-de dar. Imagina o bebé, pele e ossos malformados, a sugar a pele seca do peito da mãe, com olhos vazios, encovados e distantes, sem dores, sem lágrimas, porque até isso lhe tiraram.

Imagina crianças de dois a dez anos perdidas, sem família, com olhos tristes e grandes, a tomarem conta de outras crianças, que não lhes são nada, mas que são irmãos da mesma desgraça. Repara como elas se conduzem aos trambolhões por cima dos destroços dos prédios, invólucros ou detritos de material de guerra, sem destino, de mãos dadas. Ou como uma leva outra ao colo. Feridas e ensanguentadas, levam uma lata ou plástico seboso na outra mão, para encher de comida ou água, se encontrarem no chão ou alguém que dê — Fernão Lopes, no Cerco de Lisboa, disse que os habitantes do Castelo, não tendo mais que comer, esgaravatavam os terrenos das bancas da feira à procura de um grão de cereal, deixado perdido, enterrado na terra.

Repara como os velhos se arrastam, como os jovens morrem, como os corpos de homens, mulheres e crianças estão espalhados pelo chão, como as moscas e os vernes se passeiam por eles, como os animais esfomeados se banqueteiam pelas carnes pútridas e ossos desnudos. Repara como esses corpos são na sua grande maioria de mulheres e crianças.

As guerras não são uma imagem do passado, são uma realidade bem viva, aparentemente, longe de nós. Só aparentemente.

Tenhamos dó de quem dó já não tem e ainda que seja pecado desfrutar do que outros não podem: saibamos, ao menos, aproveitar do que temos.



 
 
 

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