Natal: Entre o Bacalhau da Algibeira e o Natal dos Meninos de Gaza
- Luis Manuel Silva

- há 7 dias
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O Natal festeja o nascimento de Jesus. Num tempo de instabilidade e perseguições, os pais de Jesus foram obrigados a fugir com a criança no ventre. O menino acabou por nascer num abrigo de animais. Reza a tradição que foi com os bafos e as palhas quentes dos animais que os pais aqueceram o menino.
Os tempos distantes do menino são muito diferentes dos tempos em que nasci. Não foi numa manjedoura nem sozinho, nem desacompanhado que dei o primeiro choro. Ao contrário da generalidade dos bebés do meu país, que nascem conforme Deus as dá, tantas vezes, sem ninguém por perto, tive a sorte de nascer num dos poucos Hospitais das Misericórdias. Ali havia quem cuidasse das mães e dos meninos.
Infelizmente, e apesar de termos uma rede de assistência que devia ser eficaz, temos os nossos meninos a nascerem nas estradas, nas ambulâncias, no carro dos pais, nos quartéis dos bombeiros… Não sei o que se passa de há uns anos para cá, só sei que estamos carentes de meninos. E também sei que quando se sentem aprisionados pela barriga da mãe, lutam por liberdade e nascem antes de chegarem a um local que saiba cuidar deles e das mães.
Se comparar os tempos de hoje com os tempos de Jesus, somos confrontados com a realidade de um problema humano e universal muito igual. Enquanto Jesus fugia das espadas de Herodes, muitos meninos de hoje fogem das espadas judaicas — será isto um padrão? — e russas. Mas também de muitas outras espadas.
Cresci, tornei-me criança, e sempre que chegava o Natal, recebia a minha prendinha que o Menino Jesus trazia. Deixava o sapatinho numa chaminé de borralho, e durante a noite, o Menino Jesus descia pela chaminé para me deixar um brinquedo de plástico ou lata no sapatinho. Fiquei muitas vezes de vigia à lareira, mas nunca o consegui ver. De uma vez, fiquei com a impressão de que o tinha visto a subir.
Sempre me fez confusão saber que o Menino Jesus descia por uma chaminé sem se sujar. Via-o sempre limpinho. Quando ia à Missa do Galo, na altura de beijar o pezinho do Menino, procurava vestígios da cinza da chaminé, mas não encontrava nada.
Dias antes do Natal, o meu pai comprava um grande e grosso bacalhau. Com ele debaixo do braço, chegava a casa feliz. Mostrava o bacalhau, a seguir cortava uma lasca salgada, dava um bocado a cada um, comia a sua parte e bebia um pequeno gole de vinho — num tempo em que o país se alimentava de vinho, nunca o deu a beber aos filhos. Depois disto, pendurava o bacalhau num prego, atrás da porta da cozinha, até ao dia em que fosse cortado e demolhado para comer na véspera de Natal.
Os meus natais, umas vezes pobrezinhos, outras mais riquinhos, eram sempre dias de festa e alegria. Enquanto o meu pai foi o animador das festas — só passou dezassete natais comigo —, havia fartura, alegria e deixava as dificuldades e a tristeza fora de casa. A obsessão pela fartura tinha de ser moderada pela algibeira da minha mãe: ele trazia o dinheiro — sem se cruzar pelas tabernas —, ela sentenciava as despesas. No entanto, era também nestes dias que era possuída por uma febre despesista: Natal tem de ser farto e alegre. E era. Mesmo depois de o meu pai ter partido, ela fazia questão de ter casa farta e alegre em dias de festa. E consegui-o, apesar de ter de criar sete filhos. Hoje, pergunto-me: como conseguiu ela esticar o dinheiro para alimentar tantas bocas esfomeadas, e ainda assim dar alegria nos dias festivos?
Com ou sem pai, os meus natais perduraram, e perduram. Ficaram-me na memória os dias natalícios, as luzes, os cantares festivos, o preto e branco dos coros na televisão com neve, a alegria das crianças, as mesas fartas que se prolongavam pela noite, interrompidas pela Missa do Galo, os dias de Natal com as barrigas encostadas a uma mesa cheia de carnes e doçarias várias. A partir do momento em que nos sentávamos à mesa, ninguém se levantava e tínhamos de encostar o almoço ao jantar e à ceia.
Durante o fausto, bem comidos e bebidos, ouvia-se e via-se o que todos queriam e não queriam: as mensagens natalícias dos soldados que combatiam no ultramar: estou bem, feliz Natal, boas festas cheias de “propriedades” — a iliteracia impedia-os de pronunciar bem “prosperidades”. Para os mais novos, como eu, em vésperas de embarcar, era um momento de incerteza e confrangimento. A minha mãe, sofredora sem o dar a perceber, ao ver-nos em silêncio profundo e meditativo, gritava: desliguem-me já essa merda! — não gostava de dizer asneiras, por mais simples que fossem. O momento e a autoridade não admitiam desobediência. Depois, num tom suave, dizia-me: meu filho, não te quero ver a gravar para a televisão mensagens de Natal para a família!
Quando chegou a minha vez de gravar uma, mesmo que o quisesse, não tinha ambiente nem festa natalícia que me convidasse a gravar uma mensagem para o Movimento Nacional Feminino — “pélvico”. Algumas procuravam ajudar e suavizar — as palavras valiam mais do que as ofertas; muitas, por uma lapiseira, um bombom colorido e um aerograma, teria sido melhor que ficassem em casa. As festas nas messes também não as favoreciam. Daí o nome: movimento nacional pélvico. Pela primeira vez na minha vida odiei o Natal. Sem intenções de provocar ou ofender os sem-abrigo, desejava mais ter o Natal de um mendigo apanhado por uma tempestade do que ter o Natal quente de África. Tinha calor, um dia de cada vez e pouca Esperança; tinha menos que um mendigo.
Sei o que será o Natal dos meninos de Gaza e da Ucrânia. E de África, e da Ásia… São meninos e inocentes. Por não conhecerem a vida, serão, porventura, felizes. Para quem não conhece, o que tem é bom. Será? Eu tinha uns anos a mais do que eles, já conhecia alguma coisa, e por conhecer, mesmo que tivesse uma mesa farta, não poderia ser feliz. Não tinha. E não era infeliz por falta de mesa farta — não é preciso ter uma mesa farta para ser feliz —, e não era infeliz por me faltar a família e os amigos: era infeliz porque me faltava tudo. Até a mocidade.
Meninos de todo o mundo, queira Deus, oxalá, Insha'Allah, Хай Бог допоможе, בעזרת השם, Khoda konead, Дай Бог / Если Бог даст, que o meu Menino Jesus vos ofereça a prendinha de Natal que mais desejais, e que sei que também desejais para os vossos pais. Se Deus está presente em todas as religiões, peço-lhe humildemente que não se refugie nos Caminhos Ínvios do Senhor, os meninos têm muito tempo para aprender o que são caminhos ínvios. Eles, sem o saberem, já os percorrem.
Atendei, Senhor, à minha prece. Se a inocência destes meninos vos toca, espalhai sobre eles a vossa sombra protetora. Dai-lhes a possibilidade de crescerem livres e bons. Fazei com que cresçam e conservem a inocência dos verdes anos. Não deixeis que cresçam forçados a odiarem. Concedei-lhes, almas puras, o livre arbítrio para escolherem o bem e perdoarem o mal — que eu, pecador, não consigo perdoar. Livrai-os de toda a nossa Maldade.
Vou estar em família, a aproveitar o que a vida tem de melhor: os docinhos, a carninha e as surpresas no sapatinho. Espero que façam o mesmo. Voltamos a ler-nos em 2026, com energias renovadas.




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