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Rescaldo dos fogos em Aradas

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 23 de set.
  • 7 min de leitura


No fogo que começou no Piódão e se arrastou por três distritos, não foram os soldados da paz que se destacaram, foram os populares que de aldeia em aldeia ajudaram como podiam. Bem Hajam!



Montes reduzidos a cinzas.
Montes reduzidos a cinzas.


Mais de um mês depois dos incêndios, cheguei ontem a Aradas. O choque foi grande, mas reservo as primeiras impressões desse impacto para uma próxima oportunidade. Sobre os incêndios, há coisas que vale a pena dizer, quanto mais não seja, por uma questão de pedagogia. Foi doloroso ver o perímetro da aldeia reduzido a cinzas. Salvaram-se as casas, felizmente, e salvou-se a casa de Deus, uma mancha branca, recentemente pintada, no meio das cinzas.

Aradas fica próximo de Unhais-o-Velho. Marginalmente, passa uma estrada que vai para São Jorge da Beira. No cruzamento desta estrada com a que circunda a aldeia, estavam três autotanques dos bombeiros com as respetivas equipas. Já no interior de Aradas, estavam mais dois autotanques: um protegia a casa do Senhor — vi esta viatura na televisão, assim como os bombeiros a cirandarem junto da Capela: eram de Lisboa —, no alto de uma pequena elevação, e já fora da aldeia; outro estava junto do que em tempos foi uma escola com muitas crianças.

Estes cinco autotanques e suas equipas de combate esperavam pacientemente que o fogo chegasse para o combater. Tanto quanto me foi dado a saber pelos que sofreram na carne a violência do fogo, tinham ordens para aguentar. É como na guerra: aguentar que o inimigo chegue para o combater. Só que enquanto se espera, perde-se a oportunidade de correr com o invasor. Como bons soldados, esperaram que o fogo chegasse. Só que o inimigo vinha bem armado e quando chegou só tinham uma de duas soluções: aguentar estoicamente e morrer ou meter o rabinho entre as pernas e fugir. Optaram pela segunda. Pessoalmente, acho que fizeram bem. A frio, acho que perderam a oportunidade de perder um bom combate se tivessem ido ao encontro do inimigo, em vez de esperar por ele.

Quando estava em casa, em Lisboa, fui acompanhando a progressão do fogo: Piódão, Covanca, Picoto, progressão lenta de dois dias e meio até às Meãs — dois dias e meio para descer uma encosta em passo de passeio, cerca de 800 metros. Inacreditável? Um fio de fogo a descer a encosta e não houve ninguém que fosse capaz de lhe pôr cobro? —, Quando o fogo chegou às Meãs, ganhou fôlego, criou músculo e galgou a floresta de eucaliptos e pinheiros para só parar nos concelhos da Guarda e Castelo Branco. A violência foi de tal ordem que tiveram de fugir. Ou então ficavam esturricados. Que veio esta gente fazer?

Durante dois dias e meio, o fogo, mansarrão, caminhou lenta e suavemente encosta abaixo. Num ou dois pares de horas, uma brigada apagava o fogo, meia hora, se fosse um avião. Tratava-se de um fogo pacífico, nada ameaçador. As populações aconselhavam, insistiam para o apagar. Não o deixem chegar às Meãs, se chega, não mais o apanham. É só mato, deixá-lo arder. Em dois dias e meio, chegou às Meãs, ganhou vida, e os bombeiros fugiram para proteger as Aradas. Ninguém conseguiu apanhá-lo. Como um atleta de longo curso, galgou o conselho da Pampilhosa, foi até ao Fundão, passeou pelos distritos de Castelo Branco e Guarda, e tudo porque não houve ninguém que se lembrasse de apagar um fio de chamas no mato que ardia preguiçosamente durante dois dias e meio, até chegar às Meãs, para ganhar fôlego e cavalgar pelas serras.

Nas Aradas, os camiões esperavam pacientemente que o fogo chegasse à povoação para defender as casas. O fogo chegou, os bombeiros fugiram e os poucos aldeões que resistiram à evacuação fizeram o que puderam. Já que não podiam fazer mais nada, salvaram as casas. No cruzamento de Unhais-o-Velho com Malhada do Rei e o alto do Picoto, para a Covanca, estavam 10 autotanques à espera da chegada do fogo, numa zona de pinhal denso. GNR e bombeiros impediam a circulação de viaturas na zona para proteger Malhada do Rei. A população, ao ver que o fogo descia a encosta e se dirigia para a aldeia, pegaram nas viaturas com bidons de água e apetrechos de combate para ir ao encontro do fogo e deter a progressão destruidora antes de galgar a estrada, a caminho da aldeia. Quando chegaram ao cruzamento, GNR e Bombeiros tentaram impedir o progresso e ameaçaram com processos disciplinares.

As populações, quando está em causa a proteção das famílias, amigos e bens, unem-se e agem como um grupo coeso que só vê uma coisa: a proteção do que construíram ao longo de uma vida, ainda que à custa da sua — o mesmo fazem os cidadãos de um país invadido. Forçaram a passagem, ignoraram as ordens dos que os queriam proteger, romperam barreiras e foram estrada fora ao encontro do fogo. Os bombeiros, ou por vergonha ou por se sentirem humilhados, foram atrás dos moradores de Malhada do Rei. Não só conseguiram fazer frente ao fogo, como o aguentaram e impediram de chegar à aldeia. Malhada do Rei e o pinhal em seu redor é uma mancha de verde no meio das cinzas. Esta ação de rebeldia contra a autoridade, não só o impediu de chegar à aldeia como travou a sua progressão até ao Vidual, e mais além, terra fora, até ao coração do concelho de Pampilhosa da Serra. Alguém se lembrou de condecorar a população de Malhada do Rei? Devia. Principalmente o senhor presidente da Républica, tão ágil em acudir às desgraças das populações.


Uma ilha no meio das cinzas. os animais morreram todos.
Uma ilha no meio das cinzas. os animais morreram todos.

Como foi possível deixar que o fogo manso descesse o picoto durante dois dias e meio, que um avião e duas dezenas de homens davam conta dele? Que esperavam os bombeiros para ir ao encontro do fogo para o combater com as torneiras dos autotanques? Esperavam ordens dos comandos. Se os bombeiros esperavam ordens dos comandos, de quem esperavam ordens os comandos? E se os comandos esperavam ordens de uma hierarquia superior, de quem recebia ordens a hierarquia superior? Neste desastre de fogos descontrolados, sem hierarquia técnica competente, não há responsabilidades — desde o bombeiro, passando pela cadeia hierárquica, até à última das instâncias — do poder político? As lideranças responsáveis são completamente irresponsáveis, ainda que digam que a prioridade era evitar mortes? É verdade que houve menos mortos, mas também é verdade que houve uma completa incúria no combate aos incêndios. Tanto quanto me foi dado a conhecer por pessoas que viveram o fogo por dentro, à custa da própria vida, por incompetência técnica de combate a incêndios, também é um facto incontestável que os bombeiros enquanto esperavam pelo fogo junto das povoações, eram os primeiros a fugir porque se tornara incontrolável. Se não fugissem, ficavam esturricados com os tanques cheios de água. Não é um fake news, é uma realidade mostrada pelas televisões no auge do fogo. As populações mendigavam água quando viam o fogo próximo das casas e os bombeiros respondiam que não tinham ordens para abrir as torneiras. Só tinham ordens para defenderem as casas. Como se pode defender uma casa se as chamas lambiam as paredes das casas com as torneiras dos autotanques fechadas? Passou-se nas Aradas, não vi, mas vi na televisão um desgraçado a implorar por uma mangueira e o bombeiro recusou porque não tinha ordens para o fazer. Outro, interrogado sobre o papel dos bombeiros, respondeu que mais do que apagar fogos, passeavam autotanques. Nem de propósito, durante a entrevista passaram meia dúzia deles: está a vê-los?


No canto superior direito estão mais de trinta colmeias. As colmeias não arderam, as abelhas, se não morreram no fogo, morreram à fome
No canto superior direito estão mais de trinta colmeias. As colmeias não arderam, as abelhas, se não morreram no fogo, morreram à fome

A minha casa, e outras das Aradas, tinham as mangueiras dos bombeiros com as torneiras fechadas. Foi inútil convencê-los a desenrolá-las. Para não ser injusto, devo dizer que se prontificaram a lançar água para as chamas, que lambiam a casa, se tivessem mangueiras disponíveis para ligar à rede. Não havia. As que havia eram poucas e mijavam pouca água. Felizmente, havia voluntários de outras aldeias para ajudar a combater o fogo com o que tinham mais à mão: ramos, pás, enxadas, mangueiras caseiras.

Bem hajam!

Com um autotanque perto e as chamas a beijarem as paredes, salvaram a minha casa e muitas mais de muitas aldeias. As populações, perante a ineficácia da (p)roteção (c)ivil, constituíam-se em grupos de combate, sem paga nem formação, para ajudar a salvar casas.

Não há responsabilidades políticas? Só haverá, se houver, responsabilidades técnicas? Mais grave, o país ardia, combatia e sofria e o governo andava de calções nas areias do Algarve. Pelo meio, bebia uns copos e fazia propaganda política. Enquanto o inferno progredia e avançava sem controlo, o governo silenciava. Onde estavam os ministros e os secretários? Até o presidente se referiu à inoportunidade do forró e dos calções demolhados em água salgada.

É bem verdade que os países têm os governos que merecem. Mas também somos masoquistas e não gostamos de pedir responsabilidades. Não é só no voto que se pedem responsabilidades. Até a comunicação social, que gosta muito de acompanhar os acontecimentos até à exaustão, não gosta de aprofundar o porquê dos acontecimentos. Se os jornalistas passassem pelas aldeias que arderam e interrogassem as pessoas que passaram por estes e outros dramas, poderiam funcionar como uma força de denuncia do que correu mal e bem.

Daqui por dois, três, quatro meses regressam as chuvas. Nós esperamos que sim. Que venham mansas e regeneradoras. Nessa altura ninguém se lembrará dos fogos, das incompetências, das responsabilidades políticas. Haverá um ministro que dirá que precisamos de mais aviões, de mais meios humanos, de mais formação, de mais verbas. Ninguém falará de reflorestação — a não ser de eucaliptos, baixinho —, nem de reordenamento do território. Iremos viver felizes e contentes porque um político disse alto e bom som que as vítimas foram ressarcidas dos prejuízos. Mas haverá um ressabiado de Pedrógão que dirá que ainda não recebeu nada nem, sequer, tem casa. O mesmo irá suceder com os fogos que serão chamados, penso eu, de Piódão.

Como nas serras há muitas casas e terrenos por registar, ou registadas em nome dos tetravós, nunca irão receber indemnizações porque a casa não está licenciada, nem registada, nem projeto tem. O desgraçado que viver numa casa dessas, está fodido porque a palavra dos vizinhos, do Presidente da Junta, do Presidente da Câmara, não valem rigorosamente nada para atestar que o homem, mulher ou casal sempre ali viveu e todos sabem que sim. Menos o papel timbrado dos arquivos da câmara e dos registos civis.

Aguenta-te, meu caro! É o país que temos. Se te serve de consolo, podes ter a certeza que daqui por quinze ou vinte anos haverá alguém que dirá que não recebeu nada. Ou se recebeu, recebeu cinco pelo que valia cinquenta. Ou se recebeu alguma coisa de jeito, era porque era amigo ou familiar de algum influente camarário, político local ou nacional.

Por último, e apesar das chamas chegarem a dois metros, a minha casa não sofreu nada, assim como outras das Aradas, graças aos populares. O mesmo se passou em muitos locais por onde o fogo passou.

A todos, heróis voluntários e solidários, Bem Hajam!



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