Quem Tinha Dinheiro Fugia do País
- Luis Manuel Silva

- 29 de mar. de 2024
- 7 min de leitura
Que Yahweh Acorde
Se Lembre da Maldade
Ressuscite a Ucrânia e Gaza
Ilumine os Caminhos da Paz
Uma Páscoa Feliz
Os dezassete anos eram a fronteira que separava os dias despreocupados da realidade dos dias sérios que se aproximavam a passo largo com o fantasma da guerra. A maior parte da canalhada alegre e divertida, se bem que com responsabilidades, amadurecia rapidamente e começava a trabalhar logo que saía da escola, aos dez anos. Muitos começavam mais cedo, nem à escola iam. Com doze anos podiam inscrever-se na Caixa de Previdência, aqueles que tinham a sorte de ter um patrão que entregasse os descontos na caixa. Poucos o faziam e metiam-nos no bolso. Ultrapassados os dezassete, a criança alegre dava lugar ao adulto pensante com medo da guerra. Desde Goa, Damão e Diu que a guerra viera para ficar e entrara definitivamente na vida das pessoas. Pais, Igreja e poderes locais transmitiam a necessidade da defesa da Pátria aos filhos e estes cresciam martelados com a ideia de uma pátria próxima e longínqua. Só quando viam os anos a somarem-se e próximos da ida às sortes é que começavam a pensar seriamente no que os esperava. A guerra ia em dez anos e os mortos, amputados e cacimbados eram cada vez mais. Já nenhuma família havia que não tivesse uma lágrima, um tropeço em casa ou na parentela. A guerra vinha de longe, entrava pela porta das casas das pessoas, os jovens viam, pensavam, não gostavam do que pensavam. Quem tinha dinheiro ou uma âncora fugia.
O comboio em movimento, carregado de verde, não parava de trepidar na via-férrea, sempre que os rodados passavam pelas junções dos carris: pum, pum... pum, pum... pum, pum... O ritmo compassado e lento, num outro tempo, numa outra viagem, que não esta, seria um doce convite ao abandono dos sentidos: o devaneio preguiçoso do olhar para lá da janela, enfeitiçado pelas cores da terra; a animação das gentes e animais que a percorriam e trabalhavam; o oscilar da carruagem, berço embalado pela trepidação dos carris; o torpor do calor soalheiro.
Os campos e as hortas bem amanhadas sucediam-se num puzzle de culturas viçosas e alinhadas daquilo que pareciam ser couves, nabiças ou outras culturas de época. Os pastos, pequenos talhões de veludo verde, bordejados nos extremos por pequenos regueiros e tufos de ervas ao longo de uma moldura de semeadura de vários tipos de forragem, ou o que quer que fosse, deslizavam uns após outros como fragmentos recortados que se encaixavam. Nalguns casos, eram pequenas linhas de pedras, toscamente acumuladas, sem qualquer preocupação de ordem, que faziam a separação. Noutros, ainda, eram muros finamente talhados, sebes de pequenos arbustos, marmeleiros selvagens, qualquer outro tipo de vedação, mais ou menos elaborada, que fazia a delimitação dos terrenos ou impedia que o gado passasse livremente para o pasto vizinho. Nas pequenas hortas de plantas tenras, viam-se pequenos alfobres de produtos agrícolas prontos a serem arrancados e transplantados para pequenas faixas de leiras, onde podiam medrar, ordenada e livremente para serem colhidos na altura própria. Os produtos de melhor qualidade eram escolhidos cuidadosamente para serem vendidos nos mercados das cidades e vilas. As sobras e produtos de fraca apresentação, por serem menos atrativos, eram de consumo caseiro.
Próximo das casas mais pequenas, vadiavam corpulentos galos, filas de pintos que seguiam a mãe galinha, patos que rodopiavam em volta de um charco, um cevado que fossava e revolvia a terra. Este chafurdava livremente em volta das vísceras e restos de comida lançados para um canto, no chiqueiro, e medrava, esperando pacientemente pela faca afiada do magarefe que o haveria de trespassar em direção ao coração. O cevado, amarrado, deitado de lado numa tosca bancada, grunhia de dor, mijava-se e borrava-se enquanto era sangrado. Finalmente, soltava o último grunhido: manso, abafado, quase carinhoso, e deixava correr os derradeiros pingos de sangue quente para o alguidar que o aparava. De seguida, era içado de cabeça para baixo, preso pelas patas ao chambaril por uma grossa corda. Suspenso de uma possante trave tosca da casa do telheiro ou casebre, ficava de um dia para o outro a enxugar as carnes. No dia seguinte, era retalhado, salgado, mergulhado na salgadeira aos bocados, separados por camadas de sal grosso para impedir que a carne se tocasse. Assim se conservava a carne, durante meses, para impedir o alastramento da contaminação, caso as larvas se desenvolvessem num dos bocados salgados. Os dias mais festivos, Natal, Páscoa, batizado, casamento, eventualmente dia de anos ou chegada de familiar longínquo ou outro qualquer acontecimento digno de nota, eram dias de abundância que tiravam a barriga de misérias da rotina diária das refeições de couves com couves, feijão com feijão, batatas com batatas… E assim seria comido, aos poucos, ao longo do ano. Os presuntos, depois de salgados, eram aproveitados, pendurados e curados nos fumeiros das toscas e escuras lareiras. Os enchidos eram preenchidos com pedaços de carne, miudezas, um pouco de toucinho, que depois de temperados e bem misturados, eram forçados a entrar no interior da tripa do animal, previamente lavada. De seguida, iam para o fumeiro, uma das muitas formas de conservação de alimentos na lareira da cozinha escura, iluminada pelas brasas e candeia a petróleo, sem frigorífico, porque electricidade, água e casa de banho era privilégio de algumas casas mais luxuosas das cidades e vilas: dejetos e despejos iam para o penico, despejado de seguida na pia comum, esterqueiro ou ribeiro que passava atrás da casa. Mais tarde, depois de tratados no fumeiro, eram vendidos por uns cobres que seriam gastos em sementes e novos produtos para mais um ciclo agrícola anual, sob o olhar atento de São Miguel. Dos animais, tudo se aproveitava; o unto para frigir ou apaladar um caldo, o sebo para dar brilho, conservar, impermeabilizar botas, utensílios de cabedal.
Estava-se no primeiro dia do mês de dezembro, dia da Restauração e Independência, dia de uma viagem de comboio e avião para restaurar Angola dos turras, garantir que Portugal era uno do Minho a Timor. Nos sítios onde as chuvas tinham sido mais generosas, viam-se campos alagadiços que transbordavam de água pelas bermas das delimitações, galgavam caminhos e estradas, chegavam quase junto da via-férrea, ou galgavam-na, modificando aqueles espaços num imenso lago de água onde nem os barcos e barqueiros faltavam.
Um pouco mais além, em terrenos mais agrestes, estendiam-se olivais com seculares oliveiras retorcidas e ocas. Grupos de velhos e mulheres varejavam-nas de modo que as azeitonas caíssem em lençóis feitos de sacos de serapilheira, cosidos uns aos outros, previamente colocados no chão, esticados por baixo de árvores desajeitadas e corpulentas, para facilitar a apanha do fruto fustigado pelo varejo. As crianças rodopiavam em volta do tosco lençol e numa brincadeira séria apanhavam a azeitona que saltara para fora ou que o varejo fizera cair no chão desprotegido.
Nos pastos verdes de erva ruminavam livremente as vacas e os bois com os mais diversificados formatos de chifres. Os cavalos e os carneiros andavam por campos de pasto diferentes. Altas, corpulentas e musculadas mulas, juntamente com burros de corpo mais modesto, forças da natureza, moviam-se por todo o lado, fazendo todo o tipo de transporte e trabalho na terra. Um ou outro jumento arrastava-se a custo, protestando, a relinchar, com os alforges abarrotados de alfaias e o que mais houvesse para carregar, de tal modo que nem o recoveiro lhe reconhecia o protesto. Alguns, com os dorsos carregados de sacos de farinha, acabada de moer no moinho de água ou vento, caminhavam pesadamente até casas e quintas dispersas para os largar. Pelos montes rapados de bravias e espontâneas plantas, seguia, às vezes, um deles com um carrego de mato: tojos, giestas, estevas, urze, arrancados bravamente lá longe, no baldio da floresta, para acamar os animais caseiros de pasto. Caminhava por um caminho estreito e íngreme, mais parecia um volumoso fardo de quatro patas que se arrastava por caminhos de pé posto do que um esforçado jumento bíblico. Não fosse a ponta da cabeça com orelhas, uma protuberância que se alongava para lá do fardo, e dificilmente se reconheceria o animal envolto pela couraça espinhosa da carga. A burriqueira seguia-o ligeiramente atrás com uma chibata na mão para o zurzir nas pernas, caso resolvesse ser um pouco mais teimoso do que o habitual, nalguma íngreme subida. Os burros eram a força transportadora mais utilizada que movia e transportava a carga, ao longo de caminhos estreitos, de umas casas para as outras, entre vilas, aldeias e cidades. Puxava carroça, transportava mato, palha, sacos, enormes fardos de roupa, grandes e fundas cestas de vime carregadas de ambos os lados dos quadris, idosos e crianças. Eram musculadas e peludas máquinas de carregar que, com maior ou menor esforço, arrojavam por caminhos de cabras ou de pé posto. Carregavam o pão, o vinho, as batatas, as couves... Eram a ambulância que transportava o doente... Nalgumas regiões mais isoladas e inacessíveis, com caminhos pedregosos ou de xistos soltos escorregadios, eram a carreta que transportava o defunto no dorso, já que ninguém se atrevia a carregá-lo por caminhos que a inexperiência de Deus construíra no início dos tempos!
Um pouco por todo o lado, sucediam-se os amontoados ou medas das forragens para dar de comer ao gado nos períodos de seca e frio. Palha ou milheiro seco para o gado crescia em torno de uma árvore ou no meio de um campo. Um grande círculo bojudo subia em direção ao céu, cónico, achatado, terminado em bico, uns metros mais acima do solo. Alguns já estavam ratados com as falhas do penso retirado para o gado ou para renovar a palha apodrecida, antiga e amassada de algum colchão a necessitar de palha fresca.
Enquanto alguns se focavam no turbilhão de sentimentos que corroía a alma, outros entretinham-se a olhar para as lides campestres que por eles desfilavam e associavam-nas às memórias mais primitivas, muitas delas tão recuadas, tão recônditas, tão esquecidas, que uma simples cena campestre as cavava lá do fundo e as tornava tão vívidas, tão presentes, que chegava a ser um milagre como era possível despertarem de tempos já escoados!
Luis Manuel Silva in "Um Comboio de Vidas Suspensas"




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