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Portugal Antes de Abril

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 14 de out.
  • 4 min de leitura


Ainda persiste na memória dos mais idosos os bandos de ceifeiras a cortarem o trigo na planície escaldante do Alentejo. No resto do país era vulgar ver-se um agricultor com a foicinha ao ombro para ir ao campo cegar cereal ou erva para o gado.

O video mostra como se processava a picagem de uma foicinha.



Foicinha
Foicinha


Texto extraído do livro «O Futuro Põe-se ao Pôr do Sol»


— Na oficina do meu avô... Sabem que é uma vila que está a começar a sair da Idade Média?

— É um pouco por todo o país, quanto mais interior mais próximo da Idade Média.

— Todos vivem da agricultura.

— O meu avô, visto à escala desse tempo, é um grande burguês, se assim se pode chamar. Trabalha para todos os agricultores da região a fazer ferramentas para a lavoura. Acho que faz exatamente a mesma coisa que o alfageme de Santarém! Só não faz espadas porque o tempo não é delas...

— Em Leiria, principalmente na Marinha Grande, há alguns ferreiros, mas muitos vidraceiros.

— Havia uma coisa que fazia e sempre achei um piadão desde menino: seduzia-me! Os lavradores iam à serralharia, ao ferreiro, pelas mais diversas razões, mas achava piada quando iam para picar a foicinha… Sabes o que é uma foicinha?

— É uma espécie de gadanha mais curta, igual à dos ceifeiros do Alentejo. Com uma mão pegam num molho de erva ou cereal e com a outra empunham um cabo com uma lâmina curva e curta, dentes picados em forma de serra, muito fininhos. Com ela cortam a erva.

— É isso mesmo. Quem é que não sabe o que é uma foicinha? É boa para cortar dedos.

— Sim, quem não a souber manobrar.

— Se calhar não sabes como aquilo é serrilhado...

— Isso não sei.

— …é difícil de explicar, mas ficam com a ideia. Tens um cavalete baixinho e comprido, uma trave grossa de madeira retangular. O ferreiro senta-se num extremo, como se montasse um cavalo, com ambos os pés escarrapachados e assentes no chão. Na trave, junto dele e por entre as pernas, sai um espigão em madeira, com uns quinze centímetros de alto. Por ele faz-se passar uma corda. No cimo do espigão, assenta um osso da canela de uma vaca, comprido, facetado em quadrado. Em cima do osso, fixam a lâmina curva com um jogo de cordas, de corda única. Faz-se passar uma ponta da corda pelo osso, espigão e foicinha e deixa-se cair para os pés; depois passa-se a outra ponta, que faz mais ou menos a mesma coisa; pisam ambas as pontas da corda para manter a lâmina firmemente apertada e justa ao osso. Numa mão têm um pequeno cinzel, muito bem afiado, e na outra um martelinho — o cinzel é pequeno e realça os calos das mãos dos ferreiros. Com um jogo de pés e mãos, a foicinha bem presa pelas cordas, faz-se deslizar a lâmina apoiada no osso. Com o cinzel e martelinho vão picando finamente a lâmina, com os dentes picotados muito juntos, em forma de serra curva e grosseira, mas eficaz. A lâmina é curva, o que complica ainda mais o processo. Faz-se isto em menos de nada! A técnica parece muito complicada, e é complicada. No entanto, o processo é extremamente rápido e simples.

— Isso só se vê, e mal, nos filmes da Idade Média. É tudo muito artesanal, tudo feito à mão.

— Confesso que não fazia ideia de como isso se fazia.

— Outra coisa ainda, quando tinha de fazer alguma ferramenta mais complicada em ferro, metia os ferros na forja e trabalhava-os, quando estavam ao rubro, à força de braços, martelo e tenaz...

— Ainda se vai vendo um pouco disso por todo o lado. Até nas grandes cidades.

— ...dependendo da cor do ferro no fogo, assim o vai malhando e dando forma. Cada cor tem um determinado tipo de trabalho: mais violento, mais suave... Depende do que se pretende. Assim, e para cada uso, torna-o mais macio ou duro mergulhando-o na água, no óleo, na terra, na areia ou então deixa-o arrefecer naturalmente.

— Isso são técnicas de têmpera do ferro para se obter durezas diferentes.

— Dei isso em Máquinas, os processos são agora mais industriais.

— Hoje em dia, principalmente nas cidades, não se vê disso. Há máquinas de soldar, engenhos de furar, começam a ver-se tornos, é tudo aparafusado...

— Em Felgueiras, e noutras vilas e aldeias do interior, ainda tens um misto do antigo com moderno: o meu avô, por exemplo, já tem algumas máquinas.

— Não sei se na vossa ainda é assim, mas existem ainda os notáveis da terra: o padre, o homem mais rico, o regedor ou qualquer outra pessoa com uma certa importância, que acabam por ser as autoridades locais com poder e influência na população.

— Tal como na Idade Média...

— É verdade nas terras mais pequenas. Em Leiria não é bem assim.

— Em Tomar, ainda se vê muito disso, acho que é por poucos anos.

— É, os tempos estão a mudar...

— Estão a mudar e bastante, eu sou um misto de cidade e campo, nasci em Guimarães, cidade pequena, mas que não deixa de ser uma cidade importante e com muita vida. Tenho vivido em Lisboa, nos últimos anos, e uma parte das minhas raízes estão em Felgueiras. E vivi dois anos em Bragança. Apesar de ter vivido em ambiente citadino, estive sempre muito próximo do campo ou ligado a ele. Guimarães, Felgueiras, Lisboa, Bragança e campo despertaram-me para essas alterações. Enquanto em Guimarães se vê uma cidade moderna, aberta, virada para o futuro — os artesãos têm vindo a desaparecer aceleradamente — em Felgueiras, perto de Guimarães, ainda persistem os vestígios medievais. No entanto, como disse, a oficina começa a ficar modernizada. Já não é aquela oficina medieval que conheci, com o fole a soprar para a forja...



Livro
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