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País de Papel

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 30 de set.
  • 10 min de leitura

📢 Boa notícia!

O livro Uma Diversão de Potestades estará disponível gratuitamente na Amazon entre os dias 3 e 5 de outubro de 2025.


Depois dos fogos e das mortes de Pedrógão, pensei que o país político tinha uma palavra a dizer sobre as florestas. Não tem. Pedrógão matou o pinhal e deu lugar à voracidade do eucalipto. Potentes buldózeres rasgaram e rasgam as entranhas das serras para encontrarem caminhos de plantio para eucaliptos.



    Entre a morte da floresta e a esperança de vida nova.
Entre a morte da floresta e a esperança de vida nova.


As minhas raízes estão num espaço bonito. Fui concebido na rua mais antiga de Portugal, em Guimarães, que liga a Senhora da Oliveira ao castelo, e abri os olhos à sombra do mesmo. Para um vimaranense, Portugal é Guimarães e o resto são conquistas. Como bom conquistador, empunhei o coração e conquistei muitas mais. A começar pelas terras circunscritas a norte do Rio Douro e para cá da Serra do Marão. A região é uma alegria para os olhos, uma frescura para o corpo, um desafio aos paladares, um bailado de cheiros, uma imersão na história, uma fantasia de coloridos.

Pouco depois de ter cumprido serviço militar, em Angola, a vida e os amores de então conduziram-me à região serrana das beiras interiores. Aqui descobri que conseguia encontrar espaço para o meu coração vimaranense, repartido por muitos locais que me ensinaram o amor pela terra. Para além da região anterior, conseguiu abrigar as terras frias transmontanas; as Montanhas, hoje conhecidas por Mágicas, da Gralheira e Montemuro; as esbraseadas do Alentejo; as selvas e planícies de Angola, que apesar da dolorosa missão que me empurraram para elas, não impediram de a ter no coração; Tavira, no Algarve — onde passei tempos inesquecíveis.

Quando subi as terras ásperas e selvagens das beiras, pouco depois de Abril, entrei num mundo comunitário, quase pré-histórico. O alcatrão derretido das estradas abeirava-se das serras. A partir de então, dava lugar a estradões pisoteados por bestas e carros seculares puxados pelas mesmas. Em alguns casos, eram piores que as picadas africanas. As ligações entre muitas aldeias eram feitas por caminhos de pé posto. A iluminação noturna fazia-se com candeias a petróleo — carbureto, nas zonas mineiras —, o piscar das estrelas e as noites aluadas. A água para uso diário era trazida das minas, que a iam buscar, por sua vez, às entranhas da terra. As necessidades eram feitas onde calhava, no penico, durante a noite. A espaços, via uma ou outra serrana, num socalco, a abrir as pernas e limpar as partes baixas com as bordas da vestimenta. A agricultura caseira fazia-se nos degraus mais limpos de xisto fatiado…

As compras eram feitas num bazar escuro, cheio de teias de aranha e pistas de corrida de ratos, com cheiros de petróleo, azeite, carvão, vinho, álcool…. Os produtos eram vendidos a granel e conviviam alegremente uns com os outros, ao lado uns dos outros, com comestíveis e sulfatos agrícolas que ajudavam a medrar e combater as pragas. Bombas tipo relógio de extração de combustíveis e líquidos alimentícios eram manobradas junto de produtos para sementeira e plantio. Ao lado, ou proximidades, viam-se ferramentas caseiras e artesanais em franco diálogo com uma panóplia de alfaias manuais e agrícolas. Os couros, sapatarias, vestimentas… eram bem visíveis, pendurados nas ombreiras da porta de entrada. Por trás de um balcão atarracado e atafulhado, estavam os barris e pequenos pipos. Por cima ou ao lado de uma tosca prancha com espigões, colocavam-se de cu para o ar os copos de vinho, sebosos e enxaguados na água do dia para que escorressem e secassem. Pendurado num gancho, num prego, numa cavilha de madeira, estava um presunto, tantas vezes bichado. Com a boca seca e sem nojo, afastavam-se os vermes para comer uma fatia de presunto salgado, acompanhado por um naco de pão recesso e um copo de vinho feito, sabe Deus como. Na água de muitos copos e mãos, trazida em vasilhame lavado com a água de uma ida diária à mina, desejava-se que a água cumprisse com a sua missão.


    Foto retirada do blog Abandonados.pt. Não é uma loja serrana, mas dá a ideia do que seria uma loja multifunções com quinquilharia para uso diário.
Foto retirada do blog Abandonados.pt. Não é uma loja serrana, mas dá a ideia do que seria uma loja multifunções com quinquilharia para uso diário.

A vida na serra era difícil e as doenças combatiam-se com as vacinas diárias de anticorpos tomadas em casa e nos bazares, combatidas com ervas como o hipericão, dedaleira, hortelã ribeirinha…. Os mais novos, quando podiam, fugiam para as cidades ou emigravam. Os laços familiares e de amizade ditavam o futuro de todos. Quando saíam, juntavam-se aos que tinham partido antes. Deste modo, cada uma das aldeias foi construindo uma determinada cultura social e profissional, seladas de acordo com as atividades acolhidas fora de portas. Assim, aldeias como Fajão e Janeiro de Baixo estavam ligadas aos chapeleiros; de Parroselos, Porto da Balsa e Unhais-o-Velho saíam amoladores de rua; Portela do Fojo e Machio geravam limpa-chaminés; Covanca, Camba e Castanheira da Serra distribuíam mão de obra pela restauração — muitos acabavam como donos de restaurantes; os carvoeiros das aldeias da Serra do Açor fossavam nas faldas das encostas. De um modo geral, todas as aldeias estavam ligadas à floresta e às minas: resineiros, madeireiros, carpinteiros, mineiros, sapateiros e curtidores de couros, curtidos e trabalhados localmente. A região serrana das beiras era um micro sistema cultural e interligado, onde se vivia e sobrevivia isoladamente. Esquecidos dos homens, mas não de Deus ou do seu santo particular, que pouca ajuda davam, agregavam-se em sociedades locais e coesas, não só na aldeia, como com as aldeias circunvizinhas, para viverem e sobreviverem.

Este foi o meu primeiro impacto com os serranos. Pela primeira vez, pude constatar como estes povos se organizavam e ajudavam comunitariamente, esquecidos dos governos centrais, principalmente do fascismo salazarista. Viviam como uma sociedade aparte e autossuficiente. Localizadas a meia encosta, em locais abrigados e soalheiros, cada aldeia tem o seu santo ou santa protetora. Nos dias sagrados de festa anual, as populações locais juntam-se e cada família faz uma oferta ao mordomo para leiloar. As festas e os leilões são organizados pelos mordomos, habitualmente dois, um a favor de benfeitorias para o santo protetor, outro a favor de benfeitorias para a aldeia. Tudo o que eram benefícios para a aldeia: fontanários, ruas e caminhos empedrados, casas do povo… era inteiramente suportado e custeado pelos aldeões. Por fim, o leiloeiro apregoa as oferendas e muitos acabam por comprar, para oferecer de novo e voltar a ser leiloado. Por vezes, a mesma oferenda é leiloada duas e três vezes, acabando por ser comprada pelo ofertante.

É durante as festas que os jovens, homens, das aldeias vizinhas, aproveitam a oportunidade para ir aos bailaricos. Elas também aproveitam para se alindarem e os receberem. Trocam-se olhares, e se surge algum sorriso acolhedor, acontecem os namoricos, mais ou menos dissimulados, até acabar em casamento. Deste modo, todas as aldeias circunvizinhas ficam ligadas por laços familiares e matrimoniais. Todos são primos. Festa é festa e o dia vai revelando o cabrito no forno, os maranhos serranos, a chanfana na caçoila…

Nesses tempos, anos 70, a vida selvagem ainda era abundante. Pelas faldas caminhavam os pinhais, de mistura com ilhas de soutos, uma ou outra nogueira, cerdeira e outras árvores de fruto. No verão, aventurava-me pelos caminhos cortantes e xistosos de pé posto, por entre pinhais, matos, tojos, magoriço, urzes, maias… Quando tal fosse possível, caminhava a pé —ou de carro, se as estradas deixassem — pelo viso das serras. Uma ou outra vez, em agosto, de mistura com um ar pesado e quente, podia aparecer uma tarde ou manhã chuvosa, acompanhada por rijas trovoadas que ressoavam pelas serras com ribombares que se repercutiam. Ainda uma ressoava quando outra estoirava nos tímpanos. Às vezes faziam-me lembrar o terror das trovoadas cruzadas de África.

Lá do alto, abarcava o horizonte por cima dos cumes, um ondulado ou escarpado rochoso que se prolongava, descia e subia, com os rios e ribeiros a serpentearem os pequenos e estreitos vales apertados pelos declives serranos. No céu, águias e peneireiros peneiravam com o olhar um lagarto, coelho ou perdiz. As rolas arrulhavam pela serra, os gaios e os corvos crocitavam, as perdizes assomavam aos caminhos. Durante a noite, ouviam-se os piares das corujas e mochos; os bufos, com grandes asas, soltavam a espaços um vuuu característico, sinal da sua presença nas proximidades. Com um pouco de sorte, podia ver-se essa enorme ave ao amanhecer ou ao anoitecer — tive a sorte de ver um, há cerca de um ano, quando caminhava em silêncio por um local mais resguardado.

Desde então, fui aprendendo a compreender as gentes serranas e nunca mais parei de subir às serras e suas casas de xisto escondidas pelos matos e florestas.

As aldeias evoluíram, muitas recobriram o xisto com cimento e cal branca, vive-se melhor, a eletricidade e a água chegam a casas mais confortáveis com sanitários, os caminhos de pé posto são agora percorridos pelos matos, o alcatrão, sem ser derretido, liga as aldeias, infelizmente, com populações envelhecidas que vão morrendo ano após ano. Perdeu-se, ou está a perder-se, a memória do último nascimento. As escolas que Abril construiu para ensinar os filhos dos locais, desde há anos que não passam de casas abandonadas ou recuperadas para alojamento local e outros fins mais pertinentes.

Se as populações vão abandonando as terras e as aldeias vão morrendo, graças à visão de longo prazo dos poderes locais e centrais, as serras, por sua vez, continuam com o seu porte vigoroso e altaneiro, os seus perfis arredondados ou abruptos, os seus recortes noturnos num fundo estrelado, os mesmos encantos de sempre. Com uma diferença, à semelhança das aldeias, as serras vão-se despindo num “striptease” cobiçoso de pinhais, matos e vida selvagem para mostrarem o seu esplendor desavergonhado e nu, cobertas apenas com uma tanga de eucaliptos.

Um mês depois do grande fogo que começou em Piódão, fui à aldeia, Aradas, Pampilhosa da Serra. Quando comecei a subir, de carro, vi as faldas nuas com socalcos. Os buldózeres ainda aproveitavam as queimadas e os mortos de Pedrógão para continuarem, com eficácia, o seu afã meticuloso de despir as serras de vida vegetal e biológica. Nesses locais, e à semelhança dos aldeões, a passarada aproveitou para emigrar para outras paragens mais acolhedoras, se as encontrassem. Centenas de hectares estavam plantados com jovens eucaliptos, trazidos dos viveiros. Os fogos de Pedrógão eram uma boa cama para eucaliptos. Outras tantas centenas esperavam docemente que os juvenis fossem acarinhados e crescessem nos viveiros para serem levados para a terra nua.

A estrada que vai de Pedrógão a Gois e Pampilhosa da serra, é rodeada de um lado e outro de serras lavradas com carreiros de eucaliptos ou à espera deles. A partir do cruzamento que vai para a Pampilhosa da Serra, a situação agrava-se, os fogos dão lugar aos eucaliptais. Por entre pinhais, ainda se ouvem as aves a conversarem com os suas falas caraterísticas: um gaio passa furtivamente, uma rola, das nossas ou turcas, veem-se e arrulham, uma águia altaneira faz a sua ronda em busca de um lagarto ou coelho, e as aves noturnas dão nota da sua presença com o seu piar característico. Quando passo pela camada de húmus, ainda se veem os matos rasteiros, fetos, musgos, arbustos de pequeno porte e toda uma vida selvagem minúscula e mais graúda consegue prosperar por baixo das sombras dos pinheiros.

O contrário acontece na floresta de eucaliptos: não é o deserto, são políticos e notas a crescerem por baixo das árvores que sugam a água, a vegetação e a vida animal. Sugaram os pinheiros, os castanheiros, os sobreiros, as nogueiras, as árvores de fruto, as oliveiras, os carrascos, as perdizes, os pardais, as rolas, as ervas, os matos rasteiros, os aldeões… é preciso continuar?

Cheguei ao Casal da Lapa, próximo das Aradas. Um ou dois quilómetros à frente: o inferno sem fogo, com borralho. Que irá acontecer a esta enorme mancha de pinhal, com eucaliptos, ardida? Abstenho-me de situar geograficamente toda esta imensa área ardida. Basta dizer que abrange três distritos: Coimbra, Castelo Branco e Guarda. É muita serra de plantio para eucaliptos. É isso mesmo que querem as populações, governos locais e central? Será preciso dizer que uma mancha de eucaliptos é o mesmo que uma mancha de areia no deserto do Saara? Já alguma vez um político se deslocou a um eucaliptal para ver o que cresce acima e abaixo dessas árvores de papel? Já alguém viu um rato, um verme, uma mosca, uma formiga debaixo dos eucaliptos? Que iremos legar aos nossos futuros, um país de papel? Será que nos perdoarão pela nossa incúria?

Não estamos cá, puta que os pariu e se fodam! Problema deles.

Faz-me lembrar a história do emir e do velho. O velho plantava uma árvore de fruto e o emir viu que o homem jamais comeria o fruto daquela árvore. Perguntou porque o fazia. O velho respondeu que o fazia porque o avô plantara árvores para ele poder beneficiar delas, por isso as plantava para os netos. O emir impressionado com a sabedoria do homem, deu-lhe umas moedas de ouro. O velho sorriu e disse: ainda agora a plantei e já está a dar frutos. O emir impressionado, deu-lhe mais umas moedas. Senhor, acabada de plantar e já deu frutos por duas vezes.

Que frutos iremos deixar para os nossos netos, se o chão dos eucaliptos nem para as formigas presta?

Cheguei a Aradas. Andei pela aldeia e fui dar uma volta a pé pelas imediações.

Nem o pio de um piu-piu se ouvia. O incêndio chegou, queimou, prosseguiu e levou tudo por onde passou. Até as moscas e formigas.

Mais de um mês passado e ainda restam os vestígios da sua passagem. As oliveiras, junto à casa, ainda ardem por baixo da terra. Quem colocar a palma da mão junto à raiz do tronco ou na terra, ainda sente a temperatura na palma da mão, à superfície. Há poucos dias, o cão de um vizinho caiu num buraco tapado pela cinza, invisível, deixado pela raiz de uma torga: morreu queimado. Uma senhora de uma aldeia vizinha aproximou-se de uma oliveira caída, foi ver, caiu no buraco invisível da oliveira. Queimou-se e luta pela vida nos queimados de Coimbra. Para os menos avisados, caminhar pelas cinzas das serras pode ser uma caminhada sem retorno.


Ratoeiras invisíveis na serra cobertas por um manto de cinzas. Estas são visíveis. Pessoas e animais têm caído nos buracos a arder debaixo da terra oca, um mês depois dos incêndios.
Ratoeiras invisíveis na serra cobertas por um manto de cinzas. Estas são visíveis. Pessoas e animais têm caído nos buracos a arder debaixo da terra oca, um mês depois dos incêndios.

O fogo ainda está bem presente debaixo da terra. Muitos dos buracos são invisíveis, os visíveis são muitos mais. Em que buraco nos deixarão cair os governos e as autarquias quando se decidirem pelo plantio de mais eucaliptos nas serras queimadas? Quem irão governar os autarcas na terra dos eucaliptos? Ainda que não o saibam, também irão ser sugados por incúria. Com tempo, paciência e fogos, vai-se vendendo o território para sermos governados por uma resma de papel gerida por políticos honestos e escrupulosos.



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