top of page
Buscar

PAÇOS DOS DUQUES DE BRAGANÇA

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 22 de abr. de 2024
  • 8 min de leitura



Claustro e chaminés dos Paços dos Duques de Bragança
Claustros


Memórias Orais

Saí de Guimarães quando era jovem. Tanto quanto me lembro, as minhas memórias não recuam até à Rua de Santa Maria, que em tempos ligava a Oliveira ao Castelo. Os meus pais, quando casaram, foram morar para uma das casas do Arco. Ali fui concebido e morei, depois de ter nascido no Hospital da Misericórdia, em Azurém, um pouco mais acima. Por mais que me esforce, e já o tenho feito muitas vezes, não tenho memórias das minhas vivências nessa casa. Mais tarde, fui viver para os Campos Novos, uma quinta nas margens de Guimarães, na freguesia da Costa. Estas são as memórias orais, com algum apoio histórico da Certidão de Nascimento.


Lampejos da Memória

Não tenho as memórias da mudança, mas tenho as da meninice. São imagens soltas de uma criança com longos cabelos em formato de caracóis. Não sei dizer muito deles, sei que eram louros e muito cobiçados, segundo a minha mãe. Por serem cobiçados, achavam que deviam ter um fim digno. Lembro-me de quando foram cortados. Creio que foram carinhosamente acamados em algodão, no interior de uma caixa bonita forrada a tecido branco com renda da mesma cor. Ainda tenho presente a caixa, não sei se de sapatos. Recordo que fui levado — e acompanhado, não sei por quem —, à Igreja de São Gualter. A história oral diz que os meus caracóis foram doados e usados por um bonito Senhor dos Passos, no interior da Igreja. Se os cabelos que hoje tem são meus ou de alguém, não sei. A minha mãe dizia que era muito menino para me lembrar, mas os lampejos dessa época ninguém mos tira.


Memórias Vivas

Tenho outras memórias dos Campos Novos, estas mais presentes. Os meus pais nunca foram lavradores. O meu pai era carpinteiro e trabalhava nas horas vagas por baixo da casa da quinta, a loja, que funcionava como adega, armazém de produtos e, acima de tudo, como oficina de carpintaria. A quinta tinha quatro grandes campos cercados por vinhas de enforcado. Os cuidados dos terrenos e vinha estavam por conta de jornaleiros contratados à jorna. Os trabalhos mais leves, sempre que possível, eram da responsabilidade dos meus pais. Os grandes trabalhos de lavras, colheitas, vindimas e debulhas ficavam por conta dos lavradores amigos e vizinhos: umas vezes por ajuste, outras por troca de trabalhos. O meu pai conhecia bem o valor do trabalho e preferia trocar a mão de obra dele, na madeira pela mão de obra dos lavradores. Todos ganhavam com isso.

Nunca foi homem de grandes sonos: trabalhava dia e noite e fazia os sonos com pequenos cochilos. Há muitas personagens históricas que não dormiam. E consta que o nosso presidente também não. Se calhar foi por isso que derrubou o governo. Quando trabalhava, era pouco apresentável, descuidado no vestir, cinto de corda nas calças. Quando estava na oficina, a loja de piso térreo, andava sempre descalço.

Nas saídas de passeio ou visitas, era vaidoso e gostava de se apresentar bem: fato e gravata com o nó feito e ajustado ao colarinho pela mulher. Só tinha de o ser porque a esposa era muito bonita. Uma ocasião, um amigo nosso apareceu lá em casa com uma máquina fotográfica para tirar fotografias ao casal e ao filho. Nesse tempo, uma fotografia obrigava a mudar de roupa. A minha mãe alindou-me, alindou-se, mas o meu pai mandou o lindo às urtigas. Quando trabalhava, ninguém o demovesse: não mudou de roupa. A fotografia é de uma mulher bonita, com um menino ao lado, e um homem nada condizente com a figura da mulher.

 

Campos Novos

Nos Campos Novos — hoje uma grande urbanização, que engoliu casa e terrenos, por cima do Parque de Guimarães — cresci, tive uma relação de proximidade com campo e cidade, aprendi a ler e a escrever; sofri com meu pai a derrota de Humberto Delgado; levantei-me de madrugada com ele para ver os motores a acelerarem pela Penha acima; acompanhei toda a produção artística que um analfabeto insaciável conseguia produzir com a madeira. Era assalariado ao dia ou à semana fora de casa; em casa dava asas à imaginação para produzir arte com madeira. Tudo quanto fosse mobília de desenho simples e elegante era criação sua, por isso mesmo muito procurado. Desenhava e criava os seus moldes, e eu, já mais crescido e sabido, ajudava nas contas e na escrita. Era o seu escriturário. Um escriturário em quem confiava, mas não cegamente: contas que fizesse, ou escrita que produzisse, era fielmente confirmado e reconfirmado pelo metro. Até as quantidades e os tipos de madeira.


Um Analfabeto Criativo

Era um analfabeto carpinteiro, marceneiro e muito mais. Sem saber ler nem escrever, não precisava de papel, mas tinha lápis e madeira para fazer sarrabiscos. Tudo o resto desenhava e escrevia na cabeça. Por isso mesmo, todos os trabalhos confiados no âmbito da sua profissão eram simples: uma porta, uma janela, umas ombreiras, uns soalhos ou forros de teto e pouco mais. Gostava da carpintaria de limpos, detestava a de toscos. O trabalho que produzia era muito solitário e raramente estava acompanhado. Pessoa afável, de trato fácil, criava facilmente laços de empatia, fosse com o jornaleiro, padre, general ou grande senhor abastado. Esta facilidade no trato abria-lhe as portas para trabalhos mais elaborados. Quem o conhecia ou ia conhecendo não o dispensava como pessoa e profissional. Por essa razão davam-lhe liberdade total para desenvolver a sua rara habilidade criativa. Além de profissional, era muito divertido — aqui há dias, o único tio vivo, muito velhinho, irmão da minha mãe, lembrou-me lugares e gentes de outros tempos: «O teu pai era muito divertido! Não havia ninguém que não gostasse dele.» Dificilmente alguém dirá o mesmo de mim.


O Segredo

Um dia, depois do trabalho, chegou a casa e disse-me: «Arranja cartucho e lápis e vamos para a loja.» O Cartucho era um papel grosso onde se embalavam os produtos de mercearia. A loja era a oficina onde se recreava a desenhar novas formas de mobílias com as mais diversas madeiras — dele ficou-me o conhecimento de algumas árvores e ferramentas. Na loja, afiou umas quantas estacas de dois palmos para cravar no chão. Quando as tinha feitas, foram colocadas numa saca de serapilheira e atirou para dentro um novelo de fio de cordel. Pegou no martelo e formão e fomos para um largo campo defronte da porta de entrada da casa. Eu assistia-o e fazia tudo o que me pedia sem saber para o que era. Espetou uma estaca num ponto e contou os passos para um dos lados: espetou outra; deu mais umas passadas: espetou outra; mais umas passadas: outra estaca; e assim sucessivamente. Da primeira estaca, fez o mesmo procedimento para o lado oposto. Depois deu-me a corda e mandou que a estendesse ao longo das estacas e a amarrasse bem com umas voltas junto ao topo. Feito isso, ficamos com um desenho, mais ou menos curvo, em forma de arco gótico. Os dois semi-arcos eram simétricos e as duas extremidades tinham o mesmo comprimento. Uma flecha, com um determinado comprimento, descia do vértice do arco e ficava de nível com as extremidades dos dois segmentos de arco. Durante uns dias não fizemos mais nada senão medir com um metro articulado, desviar as estacas mais para a frente ou para trás, para a esquerda ou direita. O trabalho dele era medir e corrigir; o meu era escrever texto e números num papel. Fizemos isto tantas vezes quantas as necessárias até se sentir satisfeito.


Um Casamento Feliz

Os meus pais conversavam muito e sabiam ouvir-se. Tanto um como o outro respeitavam muito o que o outro dizia — infelizmente, não conseguiram passar-me esse jeito: culpa minha... culpa dela... culpa de ambos... Durante este tempo em que estivemos a desenhar o arco, ele não lhe disse o que tinha em mente. Outra coisa que ela tinha de bom: sabia respeitar os segredos do meu pai. Quando ele se sentiu satisfeito, fomos jantar, já o dia estava feito. Foi então que o homem divertido e brincalhão abriu o cofe do seu segredo; foi então que soube que também tinha tido um pequeno papel que ficaria para a história.

 

O Palácio da Justiça

Nesse tempo, os presos estavam a construir o Palácio da Justiça de Guimarães. Em volta das obras, havia um largo tapume de madeira. No cimo do tapume, por dentro das obras, foi construído um pequeno corredor de madeira por onde circulavam os guardas da GNR com a arma na mão. Em frente ao palácio, estava um largo onde se dizia que ia ser colocada uma estátua da Mumadona. Nessa altura não sabia o que queria dizer aquela palavra tão estranha. Um pouco mais atrás, havia um terreno em declive. Eu e os amigos de infância, sentados e divertidos, víamos os guardas da cintura para cima a passear de um lado para o outro e desejavamos que um preso fugisse para ver o que os guardas faziam. Por trás de nós, estava a ser reconstruído o Paço dos Duques de Bragança e o meu pai carpinteirava ali.


 

Teto em Castanho dos Paços dos Duques de Bragança
Teto do Salão

Paços dos Duques de Bragança

Naquela altura, estavam a construir o madeiramento de um dos tetos do grande salão dos paços. O teto é feito de madeira de castanho em forma de quilha de nau invertida. Um dos carpinteiros destacados para construir as vigas do teto estragava mais madeira de castanho do que aproveitava. O mestre de obras, engenheiros e arquitetos ficaram preocupados porque não havia madeira nem dinheiro que resistisse para construir o vigamento. Suspenderam a obra para decidir o que fazer. Alguém alvitrou que havia um carpinteiro engenhoso que talvez conseguisse fazer o vigamento sem grandes estragos. Quando foram ter com ele, observaram-no a trabalhar. Um dos engenheiros viu-o a fazer uma leitura com o metro e quando fez o entalhe pela medida, a leitura visual do engenheiro não era coincidente com a do carpinteiro. Concluiu que nem o metro sabia ler. O carpinteiro tinha o metro ao contrário e ambos fizeram leituras diferentes. Para o analfabeto, ler o metro da esquerda para a direita ou ao contrário era o mesmo porque não lia os números, contava os decímetros, centímetros e milímetros do metro e isso tanto podia ser feito com o metro voltado para a esquerda como para a direita. O engenheiro, quando leu o metro leu os números e viu-se obrigado a concordar que a leitura estava bem feita. Para o testarem, fizeram-no tirar várias medidas e as leituras do analfabeto, reais, nem sempre coincidiam com as do engenheiro. Este era enganado pela posição do metro, ora numa posição, ora na outra — eu também o fui muitas vezes. Convencidos de que o homem sabia o que fazia, perguntaram-lhe se era capaz de fazer uma viga do teto sem estragar madeira. O homem disse que sim mas pediu-lhes uns dias para estudar as paredes, altura do teto, as espessuras e comprimentos da madeira. Foi na sequência deste pedido e encargo que foram feitos os desenhos dos vigamentos nos Campos Novos. O teste da viga foi de tal modo bem-sucedido que acabou por fazer os tetos dos dois grandes salões dos Paços dos Duques de Bragança.

 

Visitas ao Passado

São cada vez menos as vezes que vou a Guimarães, mas de cada vez que lá vou, não deixo de visitar os Paços. Quando estou debaixo daqueles tetos, vejo o meu pai com roupas esfarrapadas a contar passos de uma estaca à outra; a minha mãe, menina bonita e jovem, a chamar-nos da porta de entrada da casa, que dava para o campo, para ir à janta; vejo-me a mim, de cartucho e lápis na mão, a escrever e reescrever letras e números; vejo aquele enorme arco de quilha invertida desenhada no campo, e que lá ficou, sem que ninguém lhe mexesse, até que acabasse a última viga do teto dos Paços — todos os dias, sempre que chegava a casa, ia para lá tirar medidas e fazer correções; e vejo, finalmente, os Paços, idealizados por arquitetos e engenheiros, mas a execução da jóia de maior valor foi idealizada e construída por um analfabeto: o meu pai. Um bocadinho dessa jóia também é minha.


PS: Esta não é uma história de ficção, é bem real e poucos a conhecerão, se estiverem vivos. Se mais ninguém a conhecer, fica este testemunho. Pode ser que acrescente um pouco mais de história à rica história do Palácio. E fica o conhecimento de que aquele teto de castanho foi feito por um analfabeto que conhecia o valor da madeira e a sabia aproveitar sem estragar.








 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação

© 2025 todos os direitos reservados a Luis Manuel Silva

bottom of page