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Outra vez os incêndios

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 5 de ago
  • 8 min de leitura


Como se conduz, alegre e rapidamente, um país para o empobrecimento. Entre os muitos flagelos dos últimos anos, os incêndios são os mais visíveis, fantásticos, mortais e arrasadores de norte a sul do país.



Incêndios
Incêndios


Este fim de semana fui até à aldeia. Não sou da serra. Mas conheço e sempre gostei do espaço serrano. Acabara de chegar de uma missão de dois anos, no então ultramar, pouco depois de Abril, quando fui lá pela primeira vez. Sem que o esperasse, rumei a uma aldeia da Pampilhosa da Serra. Quando cheguei, e por ser novidade, tudo me prendeu ao lugar. Foram as serras e os seus alcantilados, os caminhos de pé posto que ligavam as aldeias, as cabradas e os pastores que as botavam, os burros e os ecos longínquos dos uivos, as noites de luz bruxuleante nos casebres, o céu incrivelmente limpo e estrelado, os cântaros de água pendurados nos braços viçosos de moças cobiçadas, quando iam à mina, e as pressurosas ajudas dos moçoilos que os carregavam, felizes, até próximo de casa. No verão, e ao final do dia, em Agosto, um rancho de jovens citadinas de meninas espevitadas e bem comportadas, furtivamente ou acompanhadas por uma irmã ou irmão mais novos, passavam noitadas namoradeiras na bica que brotava água fresca e cristalina. Sentados em bancos de pedra e cimento, ouviam-se as vozes, mal se viam os corpos, se a noite fosse de breu, como convinha. Se o luar de agosto enchesse a noite de luz, rapazes e raparigas cuidavam do espaço suficiente para que o calor dos corpos não se tocasse. Se a temperatura corporal aumentava, um coxo de cortiça com água baixava a temperatura. Fazia lembrar a fontana das cantigas de amigo.

Para mim, que até então repartia o tempo entre Lisboa e Guimarães, tudo era tão novo e tão antigo, tão perto e tão longínquo, incrivelmente tão simples, que para ir a muitas aldeias não havia carro que lá chegasse. Só de macho, burro, carro de bois ou outra alimária que puxasse carroça. As perdizes, coelhos e raposas andavam por todo o lado e bordejavam as aldeias. A floresta era abundante, recobria grande parte das serras, abrigava todo o tipo de aves diurnas e noturnas e só não havia floresta nos pequenos socalcos pedregosos, mas cultiváveis. Nas cercanias havia castanheiros, carrasqueiros, uma ou outra cerdeira, árvores de fruto raquítico, mas saboroso, oliveiras, algumas nogueiras… A floresta não era muito diversificada, mas estava cuidada por madeireiros e resineiros que a calcorreavam e cuidavam dela como se fosse uma criança acabada de nascer.

Em 2017, Portugal sofreu grandes vagas de incêndios com mais de 100 mortos. Os incêndios de Pedrógão trouxeram-me à memória um outro, na serra de Sintra, que rodeou e matou vinte e tal soldados em 1966. Entre estes dois grandes incêndios dramáticos e fatais, muitos outros ocorreram com menos mortos. Quero dizer com isto que entre 66 e 2025, pouco se aprendeu com a floresta, como deveria ser cuidada e tratada para prevenir os incêndios em Portugal.

Desde que o eucalipto começou a ser produzido intensivamente em Portugal, principalmente, depois de Abril, assistiu-se a um fenómeno — sempre houve incêndios em Portugal —, que agravou drasticamente as tragédias igníferas nas florestas. A criação de fábricas de pasta de papel exigia a plantação exaustiva de eucaliptos. Portugal acabou por se tornar num dos maiores, senão o maior, exportador mundial de papel de impressão e de escrita. Isso obrigou à produção intensiva de uma monocultura pobre, prejudicial à diversidade da fauna e flora, sorvedouro de lençóis aquíferos. Devido aos óleos voláteis, explosivos, presentes nas folhas e nas fitas suspensas das cascas das árvores, o eucalipto é por excelência um grande acumulador e dispersor de energia térmica. Quando um foco de incêndio deflagra, folhas e cascas desprendem-se e vão originar novos focos a centenas, por vezes milhares de metros de distância.

O pinhal também tem uma carga térmica elevada, mas não é tão danoso e é mais controlável. Por outro lado, enquanto um incêndio na floresta de eucalipto não provoca danos na árvore devido à sua grande capacidade de regeneração, o pinhal não regenera e morre. Neste último caso, a morte até pode ser uma excelente oportunidade para reaproveitar e reordenar a floresta. Tal não acontece com o eucalipto. A árvore não morre e cresce com mais força.

Há um mês ou dois fui para a zona da serra de São Mamede. Ali reencontrei um nicho de floresta folhosa: carvalhos, castanheiros, sobreiros, azinheiras, oliveiras e afins. Na zona norte, Gerês, serras do Alvão e Marão, Trás os Montes e Minho, existem ainda importantes nichos intocáveis de folhosas autóctones ancestrais. Nestes nichos nacionais e primitivos predominam espécies como os carvalhais e os soutos, entremeados com diversas folhosas resistentes ao fogo. Por serem espécies de folha caduca, copa alta e densa, se o fogo entra nelas, resistem facilmente e não deixam que os ventos propaguem novelos ou tochas de projeções para outras áreas. Por outro lado, quando a folha cai, conservam os terrenos húmidos que geram micro-organismos úteis para a alimentação da fauna e flora. Tal não acontece com o eucalipto, fonte de enriquecimento das papeleiras, de empobrecimento dos terrenos e populações.



Eucaliptos
Eucaliptos


A caminho da aldeia, na Pampilhosa, depois dos grandes incêndios da altura, lembrei-me que a seguir ao nó da A13 com a IC 8, precisamente no cruzamento com a triste e famosa Estrada da Morte, fazia, e faço, um trajeto de cerca de oitenta quilómetros, IC8, EN2, e ER 344, até ao alto da serra, mesmo por cima de Pampilhosa da Serra, com um intenso cheiro a queimado e um triste horizonte de cinzas. Antes, e durante os anos que por ali passei, nunca consegui ver as aldeias escondidas pela floresta. Ao longo do trajeto, só quem as conhecia sabia que estavam por ali, algures, anichadas nos vastos pinhais e eucaliptais. Ainda hoje, 8 anos depois, sempre que passo pela serra, consigo ver as aldeias e a albufeira do Zêzere a serpentear as encostas. Tudo isto era impossível de ver antes dos fogos, apelidados de Pedrógão.

Esse grande incêndio, e outros que se seguiram, alimentaram-me a esperança de que alguma coisa poderia mudar na reflorestação do país. Enganei-me. Tal como fui enganado no governo Passos Coelho quando teve entre mãos a maior oportunidade para reorganizar administrativamente o país, desde Mouzinho da Silveira, no longínquo ano de 1832, já lá vão 180 anos. Foi uma oportunidade perdida, tanto mais que era justificada com a intervenção da troika e desejada pelas populações. Se era para poupar e reorganizar, o país estava maduro e pronto para isso. Muitas lideranças falham a oportunidade de serem grandes porque não sabem interpretar os tempos e as populações. Outras, menos promissoras, por nada esperarem, sabem aproveitar os momentos para serem grandes. Foi, mais uma vez, a oportunidade perdida e concedida pelo desastre dos grandes incêndios. Os poderes públicos falham desastrosamente quando são solicitados a intervir e corrigir. Falhou com Passos, falhou com Costa, respondeu bem na Covid, voltou a falhar na resposta a dar aos jovens, deu lugar a outros que diziam que resolviam problemas em 90 dias. Não resolveram. Em vez de resolverem e corrigirem o que estava mal, demitiram, desfizeram e redesenharam pela enésima vez os mesmos desenhos, os mesmos problemas antigos. Agora, e pela primeira vez, têm um problema sério entre mãos. Que vão fazer? Culparem os governos anteriores pelo que não conseguiram fazer ou vão deitar mãos à obra, não para fazer o que acham que deve ser feito, mas para corrigir o que funciona mal?

Curiosamente, e apesar da bancarrota e dos processos em tribunais, a única tentativa de modernização e reforma do estado depois de Abril foi feita por Sócrates. Esse mérito não lhe pode ser negado, assim como, goste-se ou não, não se pode negar méritos a Isaltino. Estaremos nós condenados a dar a mão a pessoas menos escrupulosas, mas com visão de futuro? Se assim for… Oeiras sem Isaltino não era o polo dinamizador que é hoje. O país, sem Sócrates, passava ao lado da inovação tecnológica do ensino, das melhorias de condições do parque escolar, da entrega dos Magalhães à escola e aos alunos, da introdução do Simplex para agilizar as respostas estatais, da tentativa de simplificar e facilitar a resposta judicial — talvez seja por isso que a justiça viu nele um perigo… —, Sócrates e o seu governo foram suficientemente teimosos para disciplinar as classes privilegiadas estatais, como o ensino e a justiça. Infelizmente, com a visão que tinha, abriu demasiadas frentes de combate e isso foi o bastante para o derrubar e colocá-lo ao alcance da justiça que não consente nem perdoa os agravos. As melhores medidas alcançadas pelo seu governo foram revertidas, como, por exemplo, a classificação dos professores. Alguém ou classe profissional que queira ser promovida e privilegiada sem ser avaliada pelo que faz, só pode prejudicar o país. A teimosia de Sócrates na modernização está bem patente na teimosia com que afronta o sistema judiciário. Culpado? Inocente? Será culpado, mas não deixa de ser combativo. Isaltino também será culpado, é, foi, mas não se lhe pode negar o seu contributo para o conselho de Oeiras. Se cavarmos mais fundo nos governos anteriores, alguém poderá dizer que passaram isentos pela governação? Venha quem vier, que ponha a mão no fogo por alguns ministros cavaquistas. Factualmente, houve quem prestasse contas à justiça. Os que prestaram…

Não sou contra os eucaliptos. São uma fonte de receita que deve ser bem gerida e aproveitada pelos proprietários. Sou contra as políticas que nos empobrecem, contra os autarcas que não têm estofo nem visibilidade para criar condições de fixação das populações nos seus espaços de sempre. O interior e a floresta, se bem geridos com folhosas, coníferas e pasta de papel, conseguem gerar empregos e fixar as populações. Demora anos. Demora menos do que construir o aeroporto de Lisboa, levar a linha férrea às populações, construir o TGV, fazer o aproveitamento do mar, criar condições de empregabilidade para os jovens, gerar riqueza para o país. Basta que haja vontade política.

Não me canso de dizer e apregoar que o país, em 25 anos, conseguiu diminuir drasticamente o analfabetismo, aumentar a escolaridade dos nossos jovens, acabar com as barracas, levar as estradas e a luz à mais pobre das aldeias, gerar empregos, criar o ordenado mínimo nacional, construir um sistema nacional de saúde… tudo isso em menos de 25 anos. Que se passa com os políticos das novas gerações? Será que é preciso ir ao cemitério desenterrar os heróis do 25 de Abril para fazer coisas ou é preciso entregar o país às mãos do Chega? Apesar dos seus defeitos, que os tinham, por onde andam os políticos cultos, humanistas, solidários, comprometidos com ideologias e causas, os mários soares, os freitas do amaral, os sã carneiro, e uma plêiade de colaboradores que os ajudaram a moldar um país ancorado na miséria policial histórica?

Para concluir, durante o percurso de oitenta quilómetros que faço até ao alto da Pampilhosa da Serra, continuo a ver as aldeias, mas também as serras a serem desbravadas por poderosas buldózeres. Grandes manchas de terra nua, com carreiros de rebentos de eucaliptos, povoam as nossas terras e destroem por completo o já depauperado ecossistema. À volta da minha aldeia, os eucaliptais prosperam. Oxalá prosperassem da mesma maneira bons e desinteressados políticos com espírito de missão solidária. Nestas terras jamais crescerá erva, se apanharão cogumelos, se verão coelhos e perdizes, aves de rapina e outras, diurnas e noturnas, cobras e lagartos, pastores e resineiros, cabradas e bovinos… e pessoas! Cadê as pessoas? Quem as tirou, para onde as levaram? Haverá por aí algum Isaltino ou Sócrates com mãos menos limpas, mas com vontade de fazer coisas por este país, cada vez mais pobre e depauperado? Infelizmente, vejo-me obrigado a reconhecer que só gente de mãos menos limpas consegue ser suficientemente teimoso para fazer alguma coisa. Foram beneficiados? Foi pouco, se atendermos ao que fizeram pelas populações. São corruptos? Os impolutos fazem mais mal que bem. Devoram-nos! E nós? Nós temos de ter paciência e o papel de impressão e escrita para alimentar a floresta de eucalipto. Podemos ter tudo, desde que saibamos gerir a floresta.



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