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Nem sequer é um ciclo, é um continuum.

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 1 de jul.
  • 4 min de leitura

Texto do livro "Uma Diversão de Potestades"



Neste texto do meu livro, uma israelita e um palestiniano saíram do conforto universitário de Colúmbia para prestar ajuda em Gaza. O que viram no terreno estava para além do que poderiam imaginar. Não era só a destruição, era a morte gratuita, até dos que auxiliavam.



Shira e Sami no meio da destruição
Shira e Sami no meio da destruição


Shira e Sami viam diariamente a destruição e morte, que já se contava por dezenas de milhar em poucos meses de guerra, numa terra pouco maior que Manhattan. Nem o pessoal da ONU escapava. Tão-pouco o voluntariado internacional. Muitos, amigos e desconhecidos de outras organizações: médicos e enfermeiros, motoristas e socorristas, gente que distribuía alimentos, água e vestuário, mesmo que concertados com as cúpulas judaicas em ações de ajuda e socorro, acabavam por ser abatidos. Mais de duzentos voluntários da ONU e outras organizações humanitárias tinham perdido a vida. Alguns mesmo ao lado e nos mesmos trabalhos de equipa. Até agora, tirando os sustos e ferimentos menos graves, tinham escapado milagrosamente. Para poderem destruir e matarem à vontade, primeiro começaram por eliminar os jornalistas, de seguida, como ainda havia informação que escapava, foram proibidos de entrar na Faixa de Gaza, por fim foi a censura aos meios de comunicação internos e externos. Foi o começo da liberalidade destrutiva e sanguínea.

Por vezes, quando ambos se encontravam por acaso, comparavam Colúmbia com Gaza e viam de um lado o Paraíso do outro o Inferno. Num desses encontros, recuperaram os estudos de Nkuwu sobre os povos subjugados e as memórias das famílias de ambos, principalmente dos avós, nas lutas pela ocupação das terras da Palestina. Enquanto Sami se via como um filho da terra, Shira, tal como os milhões de ocupantes judeus, revia-se como neta de um estrangeiro que chegara a uma terra estranha. O passado remontava à Rússia. Quando era menina adolescente lembrava-se do velhinho avô contar que os judeus vinham de todo o lado, falavam todas as línguas, menos o hebreu que teve de ser reconstruído a partir dos ritos judaicos.

Depois da Segunda Guerra, a nova nação criou um corpo policial clandestino para dar início à perseguição dos nazis responsáveis pelas indústrias de eliminação de pessoas. No entanto, esqueceram-se das unidades de matança nazistas do Hagana, Irgum e outras.

Shira recuperava as memórias do avô e contava o que já tivera contado por mais do que uma vez aos amigos. A ocupação das terras, com gente que não parava de chegar, tinha de ser disciplinada. O caos obrigou a estabelecer regras para o estabelecimento do kibutz, originalmente criado por judeus do Leste, na Palestina do ainda Império Otomano. Era uma comunidade mista de socialismo e sionismo, sob a forma de propriedade coletiva. Exerciam atividades laborais, de uma forma igualitária, nas diversas áreas do espaço comunitário, tendo a terra como centro de trabalho. A educação das crianças era comum, assim como a vida comunitária, com refeições e atividades recreativas. Solidários com todos, praticavam a democracia no interior do kibutz. Após a independência, foram incentivados a criar espaços internos e externos nos territórios palestinianos. Devidamente treinados, funcionavam como uma milícia armada tampão na primeira linha da frente de combate. O kibutz evoluiu e acabou por contribuir para a formação de Israel. Atualmente, é gerido como uma empresa privada, com recrutamento de assalariados explorados e apátridas.

— O terrorismo dos grupos, associado aos kibutz, deu início ao terrorismo do estado.

— Tens razão, Shira. Isto nunca mais vai acabar... só se matarem todos os palestinianos. O meu avô tinha muitas histórias de terrorismos de defesa e de estado. Lembro-me de contar uma sobre a construção de um assentamento. Infelizmente, um grupo de palestinianos atirou uma bomba e matou dois judeus — esclareceu Sami.

Com palavras tristemente adoçadas pela presença de Shira, aproveitou o alívio e descanso temporário dos mísseis de destruição e morte para contar a história do avô. Apesar dos árabes e a ONU terem reafirmado que os autores do ataque seriam presos e condenados, o governo democrático ignorou a ONU e a justiça dos palestinianos. Queria justiça, desde que fosse a de Yahweh. Deu instruções duras ao exército para atacar Qibya, na Cisjordânia, demolir a aldeia, aplicar golpes extremos de vida, expulsar as populações das casas. As ordens não podiam ser mais claras. As forças terroristas avançaram por entre aldeias, que foram metralhando, até Qibya. Lá chegados, ao nascer das sombras, cercaram o povoado e metralharam as casas durante toda a noite. Os tiros e bombas foram lançados democraticamente por portas e janelas, tudo quanto fosse aberturas, para o interior. No dia seguinte, nada mais havendo a fazer, os fiéis de HaShen bombardearam as habitações.

— Diz-me, Shira, isto não te faz lembrar o Hamas?

— São iguais, senão piores.

Foi um feito notável de morte e destruição, praticado por uma nova nação, amante da paz, com bocados de corpos desmembrados e espalhados pelas ruínas das casas. Setenta e quatro mortos, quase todos mulheres e crianças, sem que um único elemento de um vasto exército de atacantes ficasse ferido. Até a mesquita e o poço de água não foram poupados. Os rebeldes que fizeram mal ao povo foram duramente castigados por Yahweh.



Livro
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