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Lusiaves

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 15 de abr.
  • 5 min de leitura

A propósito da Lusiaves, veio-me à memória dois momentos de vida: o primeiro, um frango na púcara em Maquela do Zombo, no norte de Angola; o segundo, um aviário de aves em Meca, uma aldeia de Alenquer.


Forte de Maquela do Zombo - Construido para aguentar ou ficar
Forte de Maquela do Zombo - Construido para aguentar ou ficar


Abstenho-me de contar as experiências de África. São segredos dos que passaram por lá. Também é a vergonha do poder político que tudo faz por ignorar. Uma nota positiva para o senhor Presidente da Républica. Tem razão quando acha que o sangue dos que passaram por África deve ressarcir as novas nações: louvado seja o senhor por nos dar tão elevada clarividência! Já agora, outra nota positiva para o ministro que imergiu, com sacrifício, nas águas oceânicas profundas para pescar uma pensão de cem dinheiros anuais: um poucochinho mais para uns, um poucochinho menos para outros. Sempre dá para comprar uma caixa de comprimidos LM para a dor de cabeça. Os sobreviventes ficaram sensibilizados. Se é que me é permitido, agradeço em nome de todos os combatentes!

As histórias de África não vêm para o caso Lusiaves. Mas posso dizer que um dos meus maiores prazeres foi quando me babei pela primeira vez com um frango na púcara em Maquela. Depois de quase dois anos de mato, comida fedorenta, vinho azedo, arroz com ciclistas e outras faunas fúnebres desconhecidas a jazerem na borda do prato, comer um bom bife ou um belo pito era o que mais desejava para me sentir próximo das delícias celestiais. No entanto, até tinha carne em abundância. Pacaças, gungas, gnus, nunces, palancas e eu sei lá o que mais, era o que mais havia nas florestas e anharas pantanosas do Leste. Mas se a caça, para além de encher os bolsos dos comandantes, era abundante e uma novidade, o cheiro intenso a mato, depois de uma dieta prolongada de caça, deixava-me com saudades da comida horrorosa da messe de sargentos. Para colmatar um e outro, o vago mestre era a salvação. Quando se deslocava a Nova Lisboa, uma vez por mês, cotizávamos para trazer uns miminhos. Era o suficiente para termos duas ou três refeições um pouco mais apuradas. Cada um de nós contribuía com os conhecimentos que tinha para ajudar o cozinheiro na panela. O resultado? Um prazer suavemente deglutido com umas quantas Cucas. O vinho, para além de azedo, era o habitat natural de uma abundante fauna e flora.

Os soldados não tinham tanta sorte. Para os iludir com a abastança, confecionavam-se bifes de caça do tamanho do prato, acompanhado por meia dúzia de palitos fritos em óleo rançoso e duas colheres de massa de arroz. Comiam tudo, menos a carne. O refeitório exalava um cheiro intenso e nauseabundo a carne de mato. Alguns vomitavam, não com a ingestão, mas com a aproximação do refeitório. Outros, incapazes de comer, passavam fome. Também havia quem se vingasse nas rações de combate. Do mal o menos. Quando estava de serviço, e tinha de levar a companhia ao refeitório, não conseguia comer e o cheiro intenso perseguia-me durante o dia.

Rodamos de Leste para Norte. Maquela do Zombo era um importante localzinho fronteiriço, com passagem de mercadorias de Angola para o Zaire. Tinha um largo arruamento pavimentado com a mais recente terra vermelha das picadas. A trinta quilómetros da fronteira, e apesar de estarmos com relações cortadas com o Zaire, a estrada poeirenta escoava diariamente dezenas de grandes camiões carregados com peixe seco, electrodomésticos e demais produtos para as terras de sua excelência, o rei Mobutu. Em Maquela, os escudos angolanos, os zaires e os dólares fluíam nas algibeiras e no póquer com a mesma facilidade com que fluíam as águas do rio Congo para Santo António do Zaire. Era um local de paragem obrigatório. A extensa fronteira do norte era perigosa e minada, com corredores de guerrilheiros. Menos a picada de Maquela: convinha aos dois lados. Os camionistas, depois de dezenas e dezenas de quilómetros a respirarem a terra da picada, aproveitavam para parar, lavar a cara, desentupir as narinas, limpar a garganta com umas cervejas e comer um belo bife tenrinho de carne sem fibras e sem sabor a mato num dos dois restaurantes.


Maquela do Zombo
Maquela do Zombo


O frango na púcara, feito por um jovem casal de Coimbra, era famoso. Ele, soldado do batalhão que rendi, em vez de regressar, optou por ficar. Chamou a jovem, bonita e cordial mulher — nesse tempo, muitos jovens casavam antes de ir para a tropa — e abriram um restaurante. Tinham jeito para cozinhar e cativar as pessoas. Na cabeça deles era um bom investimento e começo de vida. Concordávamos. Encontraram o Eldorado. Será que conseguiram fugir? Coitados! O 25 de Abril destrui-lhes o sonho. Mas o frango na púcara era divino e tem-me perseguido pela vida fora: foi um dos melhores prazeres que tive em África.

Correram alguns anos e muita coisa se passou. Um belo dia aterrei em Meca. Foi um dia excelente até ao momento em que fui convidado a entrar no aviário do dono de uma adega. No tempo da gasolina barata podia-se andar cem quilómetros para comprar meia dúzia de garrafões de vinho. Ainda hoje estou para perceber o que marcou mais: se os vómitos da caça do Leste de angola, se os arranques estomacais dos frangos de Meca. Quer um quer outro marcaram a minha dieta durante anos: não podia ver cabrito e frango à minha frente. Se bem que os matos fossem diferentes, cada vez que via alguém comer cabrito, sentia um intenso cheiro a mato: ficava com a refeição estragada; quanto aos frangos, durou um pouco mais: fui incapaz de comer frango durante quase vinte anos. De cada vez que passava por uma churrascaria ou alguém comia frango, via o aviário de Meca. Por volta dos quarenta, cinquenta anos, aventurei-me no cabrito e hoje não recuso um bom ensopado ou cabrito no forno. Quanto ao frango, se for da guia ou cabidela, é de comer e chorar por mais. Curiosamente, há muitos anos que não como um frango na púcara.

As imagens que vi na televisão deixam muito a desejar ao que encontrei em Meca. Mas acredito que poderá ser bem pior.

Hoje fui obrigado a comer frango em casa. Às vezes acontece. É uma exigência juvenil. Não foi um bom dia nem uma boa refeição. A culpa é da Lusiaves. As memórias são como o isco no anzol: é preciso esperar que o peixe morda. Quando menos esperamos, lá vem mais uma. Os anos vão passando, mas haverá sempre algo que as desperte. Não precisamos de ir atrás delas, isso é o ganha pão do psicólogo, elas encarregam-se de vir ao nosso encontro. Às vezes pelas piores razões, foi o caso da Lusiaves.



 
 
 

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