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Levantamento das Caldas da Rainha.

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 16 de mar. de 2024
  • 13 min de leitura

Um Pouco de História Pessoal e Nacional


Uma coluna militar avança sobre Lisboa: 16 março 1974
Quartel do Regimento das Calda da Rainha


Férias

De 1972 a finais de 1974, estava a cumprir serviço militar em Angola. No dia de hoje, 16 de março, há 50 anos, deu-se o levantamento das Caldas da Rainha. Neste dia estava de férias no Lobito.

Em meados de 73, vim de licença militar ao Puto, como chamávamos a Portugal. Nos dialectos autóctones, “Muene Puto” era o nome que davam ao rei de Portugal e durante a guerra colonial, todos chamavam “Puto” a Portugal. Puto, neste caso, não é sinónimo de criança, apesar de Portugal ser pequeno, se comparado com Angola. Nesses tempos, quem pudesse e tivesse saudades da namorada ou mulher, embarcava na TAP para aterrar nos carinhos da amada. Bebidos os lábios nos laços apertados, voltava ao rame-rame da vida no mato. Quando regressei, fui surpreendido com o aumento da atividade operacional na zona: UNITA e MPLA lutavam entre si e nós contra eles.

Por via disso, eu e um camarada achamos melhor ir aproveitando o certo pelo incerto e decidimos gozar as férias de 74 o mais cedo que nos fosse permitido. Quando o comando autorizou a marcação das férias, procuramos encaixá-las com o famoso Carnaval do Lobito, que coincidiu com o meu dia de anos, 26 de fevereiro. Benguela era mesmo ao lado e ambas as cidades prometiam uma boa estadia.

Foi uma boa decisão e jamais esquecerei o Lobito.


A Viagem

Trânsito populacional numa estação dos caminhos de ferro
Caminhos de Ferro de Benguela: comboio Lobito-Catanga

Uma patrulha trouxe-nos à estação de Silva Porto e embarcamos num comboio a perder de vista. Pela linha, que atravessava Angola e penetrava no Catanga, arrastava-se uma extensa serpente de vagões para escoar todo o tipo de minério extraído das ricas minas do Catanga para o porto do Lobito e daqui para a Europa. Algures, ficavam os vagões de transporte de pessoas: primeira, segunda, terceira e quarta classe. Na quarta classe amontoavam-se todos os povos autóctones, com os mais diversos linguajares, que se deslocavam e transportavam animais e mercadorias. A primeira classe, onde viajamos, era uma carruagem cama com camarotes de luxo, bancos de couro, metais amarelos, pequena mesinha, lavatório e sanitário, o necessário para fazer vida dentro do camarote sem sair. Os empregados, negros, sempre impecavelmente limpos, sempre atentos às nossas necessidades, zelavam para que não nos faltasse nada. Foram três dias de viagem e sonho, a fazer lembrar as luxuosas viagens de comboio dos filmes, género Hercule Poirot. O camarote servia-nos para descansar, escrever, fazer a higiene e dormir, mas preferíamos o salão do restaurante e bar. Ali nos sentávamos horas a conversar com quem estivesse. Os diálogos eram fáceis e toda a gente gostava de conversar com toda a gente. Todos tinham histórias de vida para contar e todos gostavam de ouvir. À medida que progredíamos, íamos admirando toda aquela riqueza de paisagem marginal, a perder de vista, com zonas de montanha e planície, leitos de rios secos, que só levavam as águas nas épocas das chuvas, e animais selvagens, de grande e pequeno porte, que pastavam ou perseguiam a presa. Por vezes, nas curvas que fugiam às pequenas e grandes subidas, parecia que o comboio se dobrava sobre si mesmo e as locomotivas davam a sensação de se quererem juntar aos vagões traseiros. Um comboio destes podia ter até 150 vagões, carregados de minério, e um comprimento da ordem dos 2 kms. Era esta longa serpentina que se deslocava vagarosamente sobre carris, puxada por mais de uma potente locomotiva, geralmente duas, que permitia dar a ilusão de um longo comboio partido em dois e a rodar em sentidos contrários nas curvas mais fechadas. Muito antes de chegar a Benguela, e em toda a região, as plantações de produtos eram extensas, ricas e bem cuidadas. O mesmo se passou antes e depois de Benguela até chegar ao Lobito.


Hotel Términus

O Hotel ficava junto do porto, estação e praia
Hotel Términus, como o conheci, na Restinga do Lobito

Quando chegamos, instalamo-nos no Hotel Términus, outra boa decisão.

O movimento de entradas e saídas era intenso, mas também havia quem ficasse temporadas devido à existência do porto marítimo e a estação dos Caminhos de Ferro Benguela-Catanga, a sul do Congo Belga.

À volta do porto do Lobito crescia toda uma indústria de entretimento noturno, procurada por marinheiros, funcionários e passageiros dos caminhos de ferro, sociedade civil de Angola e, por fim, os militares dos grandes quarteis dos três ramos das Forças Armadas para assegurar a defesa e logística de guerra de toda a Região Militar.

No hotel estavam hospedados angolanos, portugueses e outras gentes de mais proveniências. Conseguimos estabelecer, facilmente, amizade com muitos e bons amigos civis, alguns artistas ligados à cultura e meio artístico, bailarinos e bailarinas. Como éramos os dois únicos militares hospedados no hotel, suavizaram um pouco a nossa vida: apresentaram-nos à sociedade local e introduziram-nos no mundo animado dos bares e vida noturna. Não foi fácil entrar no convívio do meio, não por eles, mas por nós. A nossa bolsa chegava para as nossas extravagâncias, não para despejar angolares em espetáculos, whisky e champanhe. No entanto, como estávamos bem acompanhados, tínhamos mesa e bar aberto.

O Carnaval, a música, os bailes sensuais eram demais para dois jovens apaparicados, mimados e protegidos por gente que não nos conhecia de lado nenhum. Confrontados com a falta de dinheiro, recusávamos os convites:

— Não te preocupes, és meu convidado.

E lá íamos agarrados pelo beicinho delas e a camaradagem dos amigos. Os amores de guerra são voláteis, a imponderabilidade da vida assim o permite, e têm a violência rompante de quem não sabe com o que contar no dia seguinte: surgem naturalmente, naturalmente acabam com um beijo de que tudo corra bem no mato. Esta facilidade e liberdade de convívio com os locais, e os que se encontram em trânsito para trabalho temporário, já o tinha verificado em Luanda e Nova Lisboa, num ou noutro dia que por lá andei em serviço ou trânsito.


16 de Março

Falta de controlo  da censura?!
Como foi visto o 16 de Março de 1974 pelos jornais

Se um qualquer Batista Bastos me perguntasse onde estava no dia 16 de março, aquando do levantamento das Caldas da Rainha, dizia que estava bem acompanhado com gente boa e amiga. Nesse dia levantamo-nos tarde e fomos tomar o pequeno-almoço ao restaurante do hotel. A uma mesa estavam umas amigas nossas e juntamo-nos ao grupo. Por ali ficamos a conversar até à hora do almoço. Um amigo de dias, artista e pintor, aproximou-se de nós e convidou-nos para almoçar com ele. Pareceu-nos excessivamente feliz e brincamos com isso. Incapaz de se conter, falou de uma forma aberta e expansiva:

— Há um golpe militar no Puto!

De vez em quando, o pintor bebia um pouco mais e ficava alegrote. Galhofamos.

— Não, não! Nunca estive mais sóbrio na minha vida! Há mesmo um golpe militar, mas não se sabe nada.

Perante isto, procuramos um rádio e tentamos sintonizar vários postos: nada de notícias. Durante essa tarde, não nos separamos e estávamos ansiosos. Aos poucos, as pessoas pronunciavam-se sobre algo que se passaria em Lisboa, mas ninguém concretizava nada sobre a realidade do golpe. Nós os dois, militares de férias, mas em exercício, questionamo-nos sobre o que fazer. A não comparência nos quarteis, numa situação de rebelião, dava direito a prisão. Dos que estavam presentes, uns aconselhavam a apresentação na unidade mais próxima, outros diziam para esperar para ver. Entre os dois decidimos arriscar e esperar por mais notícias. Finalmente, já noite dentro, alguém disse que Marcelo Caetano tinha comunicado que “reina a calma em todo o país”. Assunto encerrado e ainda ficamos mais uns dias no Lobito.


Brigada do Reumático

Spínola e Costa Gomes, ao não comparecerem no beija-mão desencadearam o 25 de Abril mais cedo
Portugal e o Futuro abriu as portas para o fim da guerra

Estranhamente, quando chegamos ao mato, ninguém sabia nada sobre o levantamento das Caldas da Rainha no Puto. Se o comando sabia, não o reportou. Como era responsável pelas transmissões, procurei saber se tinham recebido alguma mensagem suspeita durante a minha ausência. Garantiram-me que não.

Mais tarde, soube que os comandos, oficiais generais, conhecidos pela brigada do reumático, se apresentaram quase todos a 14 de março ao Presidente do Conselho, a quem afirmaram a lealdade das Forças Armadas. Perante esta manifestação de lealdade, Marcelo respondeu: «O país está seguro de que conta com as suas Forças Armadas e em todos os escalões destas não poderão restar dúvidas acerca da atitude dos seus comandos». Dois dias depois, uma coluna militar saiu das Caldas da Rainha para tomar Lisboa; passado um mês, as Forças Armadas responderam à chamada com o 25 de Abril. O país, tal como Marcelo Caetano dissera, estava seguro com as suas Forças Armadas.

Esta apresentação dos altos comandos militares na presidência do conselho foi desencadeada pela publicação do livro de Spínola, “Portugal e o Futuro”, que apontava para a autodeterminação das províncias ultramarinas. Os generais Spínola e Costa Gomes recusaram-se a comparecer ao beija-mão. Por tal motivo, foram exonerados das funções dos altos comandos, com a agravante da pública edição e consequente venda do livro: Spínola por o escrever e Costa Gomes por ter aprovado. O livro apontava uma saída para terminar com a guerra de África


Números da Guerra


As guerras nas três frentes não eram "softs", eram violentas.
As minas, armadilhas e emboscadas faziam muitas vítimas

A Propósito desta data, e das guerras da Ucrânia e Gaza, que considero histórica e foi marcante para o futuro da minha vida, lembro que todos, ou quase todos, somos despertados, diariamente, para a violência destas guerras com mortos e destruição de abrigos, o colapso da educação e saúde, o desespero da fome... O futuro destes povos e famílias fica para sempre comprometido.

Os números que aqui deixo, se comparados com o que se passou durante 13 anos de guerra em África, pode dar, passados tantos anos, uma visão do que foi a guerra sem net, sem jornais, sem rádio ou televisão que informasse o que era o açougue de África. Estávamos cegos, assim como os russos. No entanto, há uma diferença, nós éramos analfabetos, não tínhamos como nos informar; os russos só não se informam se não quiserem. Somos um país com pouca auto-estima e gostamos de varrer para baixo do tapete o que são misérias e degradações pessoais e do país. Até o pobre esconde a pobreza e o vizinho faz por a ignorar. A guerra de África é um espinho no país e quanto menos se souber, melhor. Infelizmente, quem passou por lá não esquece.

Por essa razão, este 16 de março não me deixa contribuir para o esquecimento. Aqui deixo alguns números às novas gerações. O meu intuito é contar o que foi a vida dos avós. Só conhecendo o passado, saberão construir um futuro melhor. Não há futuro sem passado que ensine o presente.


Números

Os números que apresento dizem respeito à realidade da Metrópole. É preciso alargar o horizonte da nossa imaginação para incluir a contribuição dos africanos, negros e brancos. Se projetarmos a realidade dos números da metrópole e os cotejarmos com a desconhecida contribuição africana, os números multiplicam-se e são arrasadores. Essas tropas locais contribuíram para a defesa do território, sofreram os seus mortos e feridos, e mais tarde foram abandonados pelo Puto para serem mortos pelos movimentos independentistas, convertidos em exércitos das novas nações.


(Algumas fotos e números foram obtidos, com a devida vénia, do portal da Defesa Nacional, portal dos veteranos da guerra do ultramar, livros e outros.)


Os números da Metrópole

— População: 8 milhões

— Tempo de guerra: 13 anos

— Mobilizados de Portugal: 800 mil

— Número oficial de mortos: 8831 — cerca de metade em confrontos diretos, a outra metade era reportada como morte por acidente ou doença. Os mortos por doença visavam projetar na opinião pública a baixa mortalidade em combate, menor do que se supunha, face à quantidade de mortos diários.

— Doentes e feridos: 100000 — destes, 30000 foram evacuados dos cenários de guerra; 14000 ficaram com vários tipos de deficiência física; 5120 ficaram com incapacidade superior a 60%.

— Neuróticos da guerra — Cacimbados: 140000

Face a estes números, não havia família que não fosse afectada pela guerra.


Comunicados


O carteiro era o mensageiro das boas notícias e das desgraças
As condolências pelos que morreram ao serviço da Pátria

— Modelo do telegrama enviado à família do defunto pelo Ministério do Exército: “mais sentidas condolências” “por motivo combate defesa da Pátria” “seu filho soldado fulano tal” — O carteiro era uma figura maldita que só trazia desgraças.

— Comunicado diário que o ministério enviava para os jornais publicarem em letra discreta, numa página interior par, com os mortos nas três frentes:


Diário de Notícias de 19 de janeiro de 1974

“O Serviço de Informação Pública das Forças Armadas comunica que morreram em combate, no Estado de Moçambique, os seguintes militares: furriel miliciano n.º 71809/71, António José Carvalho da Silva, natural de Azeitão, Setúbal, filho de Jaime Silva e de Isabel Maria Carvalho da Silva; 1.º cabo n.º 160986/71, José dos Santos Neves, natural de Santar, Nelas, filho de Joaquim Lourenço Neves e de Dulce Soares dos Santos; soldado n.º 070140/71, Manuel Gonçalves Ribeiro, natural de Águas Santas, Maia, filho de Manuel Alves Ribeiro e de Silvina Francisco Gonçalves Barbosa, casado com Fernanda Barbosa Silva Ribeiro, na província da Guiné; o furriel miliciano n.º 1358944/71, Luís Filipe Pinto Soares, natural da freguesia dos Anjos, Lisboa, filho de Henrique Ilídio Soares e de Deolinda Navais Pinto Soares; 1.º cabo n.º 133171/73, José Tavares das Neves Caetano, natural do Monte da Caparica, Almada, filho de José Joaquim das Neves Caetano e de Ofélia dos Santos Tavares; 1.º cabo n.º 047530/71, Fernando Júlio Silveira Moreira, natural de Cedofeita, Porto, filho de Alberto Duarte Moreira, já falecido, e de Maria da Conceição Silveira; o soldado n.º 093012/72, Mário Ferreira da Costa, natural de Cantanhede, filho de Joaquim da Costa e Maria da Conceição Ferreira, casado com Maria Isabel Silva Loureiro.”

Neste dia não foram comunicados mortos em Angola.


Uma das situações mais dramáticas que vivi, foi a de um amigo, conterrâneo e camarada de Creixomil, Guimarães, furriel como eu. Enquanto morria com o sangue a esvair-se pelas veias, teve tempo para se despedir dos camaradas presentes e da família. Morreu serenamente com um sorriso, parecia um anjo, a pedir desculpa à mãe por não poder regressar. Deixou um irmão morto em Moçambique, outro na Guiné, e um deficiente em casa. Nas nossas conversas africanas, perguntei-lhe:

— Porque não pediste o amparo de família?

— Pedi... Não foi aprovado.


Média total de mortos por ano

— Angola, 13 anos de guerra: 246

— Moçambique, 10 anos de guerra: 285

— Guiné, 11 anos de guerra: 186

— Total de mortos nas três frentes: 630


Estatística militar: outra forma de ver os números

— O meu batalhão era constituído por quatro companhias, com cerca de 120 homens, cada, num total de 477. Se considerarmos que os mortos por ano foram 630, temos que:

— Todos os anos se eliminava um batalhão e um terço

— De outro modo: todos os anos se eliminavam mais de 5 companhias

— Em 13 anos de combate foram eliminadas mais de 65 companhias

— As 65 companhias formavam 16 batalhões que foram eliminados

— Se considerarmos um regimento com 4 batalhões, Portugal perdeu mais de 4 regimentos em 13 anos de guerra

— Patentes dos mortos: 1 General, 2 brigadeiros, 3 coronéis, 15 tenentes-coronéis, 22 majores, 100 capitães, 40 tenentes, 300 alferes, 900 sargentos e furriéis, 1600 cabos, 5500 soldados e marinheiros.

— Estes são os números oficiais dos que iam morrendo “lá longe, onde o sol castiga mais”, como cantava Paco Bandeira.

— Os números não oficiais apontam para mais de 10000 mortos, 770 por ano. Quem saberá dizer se não serão mais, ainda?


O país, com cerca de 8 milhões de habitantes, os homens na guerra, fugidos ou emigrados, só era viável economicamente com a participação das mulheres, viúvas de homens mortos e vivos. Quando entrou na década de 70, estava perigosamente próximo do colapso. Os recursos económicos médios, ao longo dos 13 anos de guerra, foram de 33% do Orçamento do Estado, em cada ano. Depois da segunda metade da década de 60 chegava a ultrapassar os 40%.


Os números de Gaza e Ucrânia


Os nossos mortos de Belém também impressionam pelo número
Cada uma das bandeiras simboliza um morto na Ucrânia
Não quero acreditar que os sobreviventes do Holocausto deixem o Bibi fazer o que lhes fizeram.
Todos condenam os mortos do HAMAS; quem suspende o genocídio?

O drama das duas guerras actuais da Ucrânia e Palestina aponta para números de mortes diárias, perfeitamente arrasadores.

Procurei fazer um cálculo percentual dos mortos, até agora, em cada uma das guerras, para ucranianos e palestinos, tendo em conta a demografia, e comparei os valores com os da nossa realidade colonial. Estes números não têm em conta os mortos russos, ao que parece, terrivelmente assustadores.

Percentualmente, os mortos oficiais de ucranianos representam metade dos nosso mortos. Os mortos de palestinos são 10 vezes mais do que os nossos.

Tendo em conta que Gaza é um território pequeno, cerca de 365 km2, onde se aglomeram aproximadamente 2,5 milhões de pessoas, e porque aqueles desgraçados não têm para onde fugir, uma bomba, por mais inteligente que seja, não tem a inteligência de Netanyahu para poupar vidas.

Já quanto à Ucrânia, a dimensão territorial e a dispersão das pessoas não é tão mortal como Gaza, por enquanto — comparativamente a Portugal, tem uma mortalidade de cerca de metade da nossa guerra.

Se vencerem a guerra — eu que sou contra todas, desejo ardentemente que sim —, vão passar muitos e longos anos pelos mesmos traumas que nós passamos, com uma diferença: defenderam a casa e a família: este trauma não terão. Aos olhos dos seus e do mundo, serão vistos como heróis que não se vergaram.

Psicologicamente, estas três guerras tiveram e vão ter efeitos nefastos na vida das pessoas, famílias e países: uns têm a autoridade moral da defesa do que é seu por direito; outros, tendo de direito aquilo que sempre foi seu, são devolvidos corajosamente por israelitas, com consentimento da comunidade internacional, à Idade da Pedra — pela frente vão ter um caminho de terroristas ressabiados porque ninguém os compreendeu, protegeu, nem fez nada por eles, até a água da chuva tiraram porque não lhes é permitido construir cisternas: a África do Sul não era tão sádica; nós fizemos a nossa guerra em nome de um direito que não tínhamos: os mobilizados nem sabiam porque lutavam. Fomos enviados para aquilo que todos pensavam ser uma guerra justa e “soft”. Cumprida a missão, éramos recebidos como praga maldita escondida e silenciada. E ainda somos.

Na realidade, ainda continuamos em guerra, como irão estar ucranianos e palestinos daqui por muitos anos: enquanto não morrer a última viúva e o último órfão do último combatente, estaremos sempre em guerra. O povo e as instituições podem esquecer, quem passou por lá, jamais.


Tio Albino


Uma guerra de trincheiras onde se morreu aos milhares de várias nações.
Cemitério dos portugueses em La Lys

Lembro-me do tio Albino, um velhinho simpático e doce, com olhos cor de mel muito brilhantes. Velhinho e meigo, recebia as simpatias da família e amigos. Conheci o tio Albino numa aldeia serrana. Por ser velhinho, já pouco fazia, mas ainda conseguia “botar” as cabras no monte. Gostava dele e nas minhas andanças pela serra, desviava o caminho para a cabrada, quando o avistava. Bom contador de histórias, acirrava-o para contar mais uma sobre a vida difícil na serra. Apesar de saber que tinha chegado há pouco tempo de Angola, nunca falamos de guerra. Por vezes, à noite, mandava-me chamar para comer um pouco de queijo de cabra e beber um copo de vinho serrano que fazia. Era mais refresco que vinho, mas era agradável de se beber, principalmente no verão, e fresquinho. Um dia, ao serão, perguntou-me como foi aquilo e ri-me. Fez mais uma ou outra pergunta inocente e eu desviava a conversa para outros assuntos. A filha e a mãe, a dada altura, disseram que eu tinha o mesmo jeito do pai quando se falava de guerra. Foi então que percebi que o tio Albino tinha estado em La Lys. A partir de então passamos a ter mais um tema de conversa que nos prendia e ligava. Tinha chegado de Angola pouco depois do 25 de Abril. Estive lá dois anos, podia estar mais, se não fosse Abril. Os batalhões já começavam a fazer mais de trinta meses de comissão. Para mim, era tudo muito fresco, mas tanto eu, um jovem de 26 anos, como ele, outro jovem de 80, sentíamo-nos bem com as nossas histórias. A partir de então, criou-se entre nós um laço de amizade e empatia que só os ex-combatentes sabem criar. Às vezes, parecia-me que os olhos do tio Albino brilhavam mais. Outras vezes ficávamos silenciosos. A mulher e a filha ouviam silenciosamente as histórias que nunca tinha contado e calava. A mãe, velhinha, mandava a filha buscar mais um cibo de queijo e botar mais vinho no copo.

— Traz, também, um chisco de presunto e broa.


 
 
 

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