Francisco
- Luis Manuel Silva

- 29 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de out.
A morte do papa apanhou o mundo cristão de surpresa. Quando foi internado, pensei que não saía. Muitos entram bastante mal e conseguem sair. Médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar são Anjos de Deus a fazerem milagres na terra.

O hospital é uma casa de dor, esperança e retoma de vida. Para os que tocam nas Portas do Além, o regresso é uma mudança radical de comportamentos. Adquiriram o conhecimento para saborear cada minuto de vida. Continuam a tecer o futuro, mas o maior projecto é o simples viver com serenidade e alegria. Em vez de complicar; descomplicam.
Naquele local de cuidados e tragédias aliviam-se dores físicas e emocionais, dão-nos esperança e alegria. Nunca passei por um problema grave, mas acompanhei de perto as dores de quem parte, as alegrias de quem regressa. Em ambos os casos todos foram ajudados. Por isso, tenho dificuldade em compreender as críticas contra o pessoal hospitalar, as longas horas de espera. Apesar da grande responsabilidade que têm sobre os ombros para segurarem nas mãos as vidas de todos, conseguem trabalhar no fio da navalha e ainda arranjam tempo para propor soluções. Acredito que os problemas sejam muitos e que a resposta pode ser melhorada, mas o maior de todos é a imaturidade, irresponsabilidade e inabilidade política. Fossem tão voluntariosos, competentes e dedicados como os Anjos de Deus e teríamos um SNS eficaz. De todos os casos que conheci e me tocaram de perto, só tenho de agradecer a todos, todos, todos a ajuda prestada. Bem Hajam pela vossa dedicação, voluntariedade e humanidade!
Apesar de ser outro país, acredito que o papa foi tão bem tratado como alguns dos meus. É papa, é certo; teve mais mordomias e privacidade. Concedo-lhe esse direito pelo bem que fez. Mas as leis da degradação da vida não fizeram dele uma pessoa mais bem tratada do que foram amigos e familiares meus. Num dos casos que conheci, acho que foram além do que permitiam os cuidados: transfusões diárias durante três meses não é cuidado; é sofrimento. Partiu depois de dias inconscientes com a pele sarapintada com o negro das agulhas no corpo. Foi atroz! Pessoalmente, não tenho medo do embarque: é mais uma experiência de vida; temo é que não me deixem navegar.
Terá sido assim com o papa? Acredito que sim. Fizeram tudo para que regressasse a casa. Regressou lúcido. Trouxe, também, as dificuldades do corpo. Também isso aconteceu próximo de mim. Regressou a casa para partir dias depois. Sabiam que ia ser assim. Estava lúcido, conversou com as pessoas, sabia que ia partir. Despediu-se, pediu para descansar, não acordou. A morte faz coisas estranhas. O papa veio à janela, abençoou as pessoas, recebeu o americano, adormeceu, acordou, partiu. Parece que foi assim.

O papa levou-me de volta a Santa Marinha da Costa, à catequese e ao Santo Padre da altura: Pio XII. Os meus oito anos, aquando da sua partida, não me permitiam saber quem era e o que fez. Lembro-me, apenas, que era querido e amado por padres e catequistas. Mas também acho que aos olhos da criança todos os papas são queridos e amados pelo mundo cristão. No entanto, tenho uma vaga ideia de que estava rodeado de uma auréola que não compreendi na altura. Mais tarde, e depois de algumas conversas com amigos e pais da minha infância, percebi que foi ao mesmo tempo amado e odiado. Odiado pelos críticos porque durante os anos da guerra foi um papa que silenciou os crimes nazistas, fascistas e alguns dos abusos sexuais mais conhecidos da altura; amado porque durante os anos da guerra acolheu e ordenou ao clero e aos conventos que acolhessem todos os filhos de Deus que fossem perseguidos, principalmente judeus. Foi um papa que cometeu a sua dose de pecados, mas pelas centenas de milhares de vidas que salvou, à custa de se manter silencioso, terá, certamente, um lugar de eleição na Casa do Pai. Se não se mantivesse em silêncio, o milhão que salvou nas cavernas e catacumbas do Vaticano e conventos italianos não teriam deixado descendência. A Europa permitiu, silenciou, não salvou e ainda hoje paga com a vergonha do silêncio a morte de milhões de palestinianos em mais de oitenta anos de crimes judaicos por troca de uma dádiva de terras que ainda não parou. Eis o contraste do Bem e da profética crueldade.
Depois de Pio XII, foi entronizado João XXIII, o Papa Bom. Dele guardo a imagem de um frei Tuck afável e bonacheirão. Urgia tirar a Igreja do imobilismo ancestral, transformá-la, trazê-la para o mundo moderno, mais próxima dos crentes. Para tal, promoveu o Concílio Vaticano II, que terminou com Paulo VI. O Concílio estabeleceu que a Igreja devia estar aberta ao mundo das religiões, promover o diálogo com outros créditos religiosos e estabelecer como meta a compreensão dos rituais cristãos pelos mais simples. Neste último caso, as missas deveriam trocar o latim pelas línguas locais. Durante este papado, passei por Bragança, Alhandra e Lisboa e fui perdendo a ligação ao Templo. Em Lisboa reencontrei o saudoso padre Bragança, um bom homem de cultura e humano. Durante alguns anos reencontramo-nos e matámos saudades da nossa terra, da Costa e dos Campos Novos, em Guimarães.
A Igreja ia mudando e Paulo VI foi o homem certo que apareceu para dar continuidade ao Vaticano II. Foi dos que mais contribuiu para a mudança. Apesar das transformações e mudanças que vinham dos papados anteriores, a Igreja era lenta a quebrar os processos seculares de cristalização. (A propósito da secularização e Abril, foi a Igreja do papa Alexandre III que deu a conhecer ao mundo um novo reino: Portugal.) Para continuar na senda ecuménica da evangelização e aproximação dos crentes e povos, o papa saiu do Vaticano e viajou pelos continentes como um peregrino. Encontrou-se com autoridades religiosas ortodoxas, o primaz da Igreja Anglicana e chefes espirituais de créditos não cristãos.
Como peregrino, visitou a Índia numa altura em que Portugal acabara de perder os territórios indianos. Falava-se, então, de uma possível visita a Fátima. Quando Salazar soube do que estava a ser preparado, recusou dar entrada a um traidor que sancionara a anexação da índia com uma visita papal. As duas diplomacias encontraram uma solução. O papa era um simples peregrino que ia em busca de conforto espiritual a Fátima nos cinquenta anos das aparições. A visita seria breve, menos de vinte e quatro horas, sem passar por Lisboa. Salazar, contrariado, acabou por aceitar a vinda e tentou que passasse por Lisboa para o obrigar aos cumprimentos da praxe. Paulo VI reafirmou a sua condição de peregrino e obrigou-o a deslocar-se para um encontro de uns meros minutos com Sua Santidade. Dizem as más línguas da altura que Sua Santidade se dirigiu a Salazar como Sua Eternidade. Foi com este papa que deixei de rezar em latim. Na altura pareceu-me estranho rezar em português.
Depois de Paulo VI, foi entronizado João Paulo I. Rezam as teorias da conspiração que foi morto pelo Vaticano ao fim de um mês de pontificado. Um mito de Fátima conta que quando a irmã Lúcia o recebeu como cardeal no Carmelo de Coimbra, ela o terá recebido como se fosse papa. O cardeal corrigiu-a e Lúcia disse-lhe que seria papa com um pontificado breve. Milagres de Fátima.
João Paulo II veio do Leste. Depois de Paulo VI, foi o que mais viajou e o que mais se aproximou dos povos e das religiões cristãs e não cristãs. Por ser um papa dos nossos dias, dominar uma apurada máquina linguística —falava catorze línguas —, todos conhecem a sua contribuição para o mundo católico, os movimentos religiosos de todos os credos, as lutas pela paz, a forma como contribuiu para o derrube de regimes ditatoriais, os atentados que sofreu, a devoção que tinha por Fátima. Muito mais há para dizer deste papa. Por ser interventivo e próximo das pessoas, contribuiu para a visão de uma igreja mais humana, próxima dos crentes de todas as religiões.
João Paulo II deixou uma tarefa difícil para o seu sucessor, Bento XVI. O papa alemão é mais conhecido pela renúncia do que pelas ações desenvolvidas. Dotado, igualmente, de uma poderosa máquina de línguas modernas e antigas, tudo indicava que poderia ter um papado bem conseguido, continuador das reformas que vinham dos seus antecessores. Visto como conservador, a favor da procriação, envolvido nas questões de género, a favor de uma moralidade sexual, com posições pouco claras nos escândalos sexuais dos clérigos, não tinha como fugir das polémicas de alguns escândalos que o perseguiam. Fosse porque estivesse realmente doente ou porque queria poupar a Igreja a tantas polémicas e contradições, acabou por resignar.
A resignação deu lugar à escolha do primeiro papa de fora da Europa, no caso, da América do Sul, Argentina. O nome que o novo papa escolheu foi Francisco. Uma escolha feliz de um cardeal jesuíta das terras do fim do mundo, como ele próprio se apresentou. Tudo indicava que a escolha do nome fazia jus aos votos de Francisco de Assis: pobreza, simplicidade, dedicação aos pobres, paz, amor pela natureza. Foi tudo isto que Francisco perseguiu, tendo como ponto de partida o favorecimento da juventude. Também não poupou os escândalos sexuais do clero, principalmente os que envolviam crianças.
Neste momento em que regressa à Casa do Pai, oxalá consiga obter d’Ele o que não conseguiu na nossa casa: a Paz no mundo, o respeito pela Natureza.
Francisco, se é que me é permitido pedir alguma coisa, rogo-te esta prece: queira Deus que consigas abrir os olhos de Deus.




Comentários