Desenraizamento
- Luis Manuel Silva

- 17 de jun.
- 4 min de leitura
Este texto é um excerto do meu novo livro, brevemente disponível na Amazon.
Uma família portuguesa foi aliciada para trabalhar nos Estados Unidos. A filha, jovem e nos primeiros anos de escolaridade, integrou-se facilmente numa comunidade multilingue e de cultura árabe.

Sofia, filha de portugueses, tinha dez anos quando os pais emigraram para os estaleiros navais de Newport, Rhode Island, nos Estados Unidos. Os pais eram de Mértola, onde nasceu. A oportunidade para emigrar surgiu quando um americano combinou seis meses de férias, em Portugal, com visitas a zonas ribeirinhas para encontrar trabalhadores que estivessem interessados em ir para os estaleiros de Newport. Um dia foi com uns amigos a Mértola e viu o pai de Sofia a fazer trabalhos de carpintaria na reparação de um barco no Rio Guadiana. Gostou do cuidado e habilidade do carpinteiro, hospedou-se numa pequena pensão de Mértola e durante uma semana ia, com frequência, às margens do Guadiana para observar os trabalhos de reparação nos pequenos barcos em madeira que por ali havia. Convencido pela habilidade, conversou com ele e convenceu-o a ir trabalhar para os estaleiros de Newport. Ao fim de meio ano, já com autorização de permanência e garantia de emprego, a embaixada deu-lhe o visto de entrada. Uns dias depois, nas vésperas do embarque, foi surpreendido por fazer parte de cerca de uma centena de trabalhadores, na maioria carpinteiros, eletricistas, serralheiros e soldadores, a caminho dos Estados Unidos. Nesse dia receberam os bilhetes de avião. O americano identificou-se como filho de um dos donos do estaleiro e comprometeu-se a ajudá-los em Newport, durante os primeiros meses, na aquisição de conhecimentos linguísticos e na procura de casa, em local a seu gosto. Quando se sentissem confiantes e seguros, poderiam chamar a família. De início, e durante o processo de emigração, os pais desconfiaram de tanta facilidade e sorte. Conheciam muitas histórias de emigração, até mesmo para a América, e quase todas eram histórias de sacrifício, dificuldades, salários mal pagos. Por vezes nem recebiam. Este americano oferecia-lhes tudo sem terem trabalho.
Quando chegou a Newport, a ajuda burocrática nunca faltou. Na semana seguinte começou a trabalhar. A família só não foi mais cedo porque decidiram deixar acabar o ano letivo da filha. Os estaleiros tinham uma grande comunidade de trabalhadores de muitas nacionalidades. Apesar disso, todos interagiam bem. Quando o pai conseguiu reunir o pequeno núcleo familiar, Sofia começou a frequentar a escola. As dificuldades iniciais foram, rapidamente, ultrapassadas e a jovem sentiu-se bem integrada com tantas culturas e falares estranhos. Era boa aluna, inteligente, comunicativa e fazia facilmente amizade com nacionais, portugueses, árabes, africanos, asiáticos e muitos mais. As crianças aprendiam depressa e bem os falares de todos. Se bem que entre si comunicassem com as línguas de origem, quando se misturavam nas brincadeiras eram multilingues. Algumas conseguiam comunicar em várias línguas. A facilidade com que saltavam de uma para a outra era rapidamente aprendida por todas e todas se entendiam. Havia algumas crianças árabes na escola e vizinhança. Sofia sentia-se fascinada pelos seus falares, cultura e tradições árabes. Aos poucos, aprendeu árabe com elas.
Enquanto crescia, estudava com amigos árabes e, sem querer, acabou por se embrenhar na cultura deles. Era adolescente quando foi, pela primeira vez, de férias, com os pais para Mértola. Na pequena cidade ribeirinha do Guadiana, encontrava algumas semelhanças construtivas com a cultura árabe. Os vestígios dos mouros estavam presentes não só em Mértola como em todo o Algarve. Nas visitas alargadas dos pais à região, desde Vila Real até Sagres, seduzia-a as semelhanças das casas e construções mais antigas. Muitas eram parecidas com o que via nas fotografias e livros dos amigos, em casa dos pais árabes.
Em Mértola, a igreja era semelhante às mesquitas. As chaminés do Algarve lembravam-lhe o rendilhado das casas árabes. Uma vez, e já com a cabeça cheia de perguntas, foi recebida por um cavaleiro mouro à entrada do Castelo. Aquilo era novo, não se lembrava de o ter visto. Curiosa, procurou saber quem era. Foi então que cavou um pouco mais nas raízes históricas de Mértola e do país. Ibn Qasi foi um grande emir muçulmano com ligações políticas e religiosas no Alentejo e Algarve. Apesar de jovem e divertida, gostava de associar o divertimento ao conhecimento. Foi na conjugação desses dois interesses que descobriu o passado da Mértola ocupada por romanos. Mais tarde cederam o lugar aos mouros e os mouros, por sua vez, cederam-na aos cristãos. No entanto, apesar da passagem e cultura destes povos, e muitos mais, antes dos romanos, a população era sempre a mesma. Os falares, tradições e religiosidades anteriores eram assimilados e transmitidos lentamente às gerações seguintes. Neste continuum de civilizações, ficavam os vestígios das anteriores. Até mesmo nos falares. Os sinais de uma conivência pacífica eram bem visíveis nas casas: mouros, judeus e cristãos tinham vivido e convivido muito bem ali, e em outras cidades, até ao fim do Século XV. Mais tarde, soube que nos lugares recônditos do Algarve e Alentejo, ainda havia quem falasse árabe no Século XVII.




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