CONHECER PARA SABER FAZER
- Luis Manuel Silva

- 3 de abr. de 2024
- 14 min de leitura

Ouvidos Duros
Para mal dos meus pecados, tive sempre uma relação difícil com os ouvidos. Tenho um ouvido duro, nada musical, avesso à educação e cultura. Os ouvidos são um dos maiores colectores de sensações e emoções. Todos os sentidos nos despertam para a beleza do mundo, a realização pessoal. Sem os sentidos não há lugar para o amor e a ternura, a alegria e tristeza, a mística exuberante da realização artística e o afunilamento para o absurdo da vida. De todos os sentidos, importantes para uma vida plena e feliz, o ouvido traduz a minha incapacidade para desfrutar e percepcionar, plenamente, os sons, só acessíveis aos privilegiados da audição. Por ter um ouvido primitivo, mais próximo da idade da pedra que das sinfonias de Mozart ou Beethoven, nunca pude beneficiar das subtilezas da música nem tive aptidão para as línguas, apesar de ter tido bons mestres. Quando era jovem, fiz tudo e mais alguma coisa para aprender música. Tentei instrumentos como a flauta, gaita de beiços, viola e até saxofone, mas o resultado era sempre o mesmo: «Dedica-te à pesca!» A viola até me acompanhou durante muitos anos, desde os dezassete. Fez a guerra colonial comigo, em Angola, e comigo passou à peluda. Acompanhou-me durante muitos anos como adorno, até acabar por se partir numa mudança de casa. Quem não tem ouvido musical, perde os encantos maviosos da voz.
Um Ouvido Nada Inglês
Nunca fui grande coisa em línguas. Consegui chegar ao último nível do American Language Institute, estudei literatura americana e inglesa, era bom a redigir, menos bom a falar, mas péssimo a ouvir. Falhei o exame final. De cada vez que a teacher tinha de decidir quem passava de nível, confessava-me: «Não sei que faça contigo, Louisse, és muito bom em tudo, mas muito duro de ouvido. Que faço contigo?» Eu encolhia os ombros e dizia: «I’m happy ‘cause i’m not a teacher.» Ela ria-se e eu ia passando de nível. Na altura em que andei por aquelas andanças, quem se submetia ao exame final ficava acreditado com um grau de master e podia dar aulas de inglês em Portugal ou em qualquer região de língua inglesa. A minha professora, Anne Parade, chamou-me mais uma vez e disse: «Louisse, se quiseres ir a exame, não te posso impedir, mas não te posso propor, é mau para mim e para ti. Podes fazer tudo bem em todas as provas a que fores submetido, mas na conversação com o júri, perdes o master. O teu problema é sempre o mesmo: o ouvido.» E os meus ouvidos perderam a oportunidade de me darem uma carreira de sucesso musical, de ouvir as nuances das notas de Mozart, de ser master em inglês.
A Rádio dos Anos 60 e 70
Apesar do meu ouvido primitivo não conseguir detetar as frequências que um ouvido normal perceciona, gosto de música e viajar, para desgosto do meu ouvido insensível. Tal como gosto de todo o tipo de leitura, por mais pobre e inculta que seja, também gosto de todo o tipo de música, por menos nobre que se faça ouvir. Até consigo divertir-me com a música do Zé Cabra. Enquanto crescia, ia convivendo com os grandes nomes da música italiana e francesa. Aos poucos, comecei a ouvir os ingleses e americanos. Para não me alongar, digo apenas que grandes músicas e nomes dos anos 60 e 70 deixavam-me a sonhar com devaneios e vozes de outros mundos. Mas também cresci com as letras de livrinhos feitos a stencil, com cera, e as vozes nos discos ou bobines de fitas de gravação que iam passando de mão em mão, a fugir às polícias. Tirando os fados, o folclore e a chamada música ligeira de cançoneteiros da altura que passavam na rádio, poucas baladas, quase todas anti-sistema, se ouviam. Todas as outras, mais tarde classificadas como Canções de Abril, ouviam-se em grupos restritos de jovens e eram anti-sistema, antiguerra, pró-liberdade... Pode-se dizer que Abril, o fruto que os capitães colheram, é o resultado do pomar plantado pelos baladeiros e ouvintes de antes de Abril. Se as baladas se dirigiam a um regime caduco, a guerra concentrava todas as veias poéticas de letras musicadas para grandes vozes: «... ó meu irmão tão breve / Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro.»
Zip-Zip
Há dias, um amigo e camarada enviou-me um link de uma música de Pedro Barroso, um baladeiro da minha idade e do Zip-Zip. Para os mais jovens como eu, o Zip-Zip foi um programa de televisão que deu oportunidades a muita gente e ajudou a abrir os horizontes de um país letárgico. Durou menos de um ano, e durante o tempo que esteve no ar, entrevistou grandes nomes e promessas da cultura e meio artístico nacional. A maioria das conversas eram conduzidas por três homens que revolucionaram o mundo da televisão e artes, como Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia. Qualquer um deles, repentistas com dotes oratórios e uma grande cultura, não deixavam que as conversas fossem anódinas, nem os convidados da craveira de um Almada Negreiros, Sophia de Mello Andresen, Amália Rodrigues, Vitorino Nemésio, o desconhecido Saramago e muitos mais, deixavam. Para além de brincarem com as palavras, de um humor subtil, um quebra-cabeças para os censores, sempre presentes, não deixavam que o programa perdesse a vivacidade com pequenas cenas cómicas e espaços musicais. A censura acabou com o programa, mas os que por lá passaram continuaram. Pedro Barroso foi uma das muitas flores que se abriram com o Zip-Zip e a sua vida nunca mais foi a mesma. Ainda bem!
Concerto em Amarante
Pedro Barroso era um homem de cultura, autor e compositor de muitas canções que contam histórias. Em jeito de balada cantada e falada, com voz de trovão e muito fôlego, bom contador de histórias, cativava os ouvintes e até mesmo o meu primitivo ouvido. Era um homem apaixonado pelo país, eternamente insatisfeito com o rumo das políticas adoptadas. O amor, a ternura, Portugal e a crítica estão sempre presentes nas canções. Nascido antes de Abril, natural do Ribatejo, sem tiques marialvistas, era um indefectível amante da liberdade. Foi um pedido que fez aos pais e avós, presentes com os filhos e netos num concerto de Amarante, em 2015, outro momento de crise nacional, que me trouxe ao escrito de hoje: «Por favor, não deixem morrer Abril. Contem aos jovens como se vivia, expliquem-lhes o que foi a liberdade, digam-lhes como era a censura. Eles precisam de conhecer para saber fazer.»
Construtores de Abril
Não posso nem sei como pedir. Nem tampouco auditório tenho para o fazer. Mas posso desejar e desejo que os jovens façam por saber o que foi Abril junto dos Avós. Que lhes perguntem como era viver num estado policial e em guerra. Portugal não era a Coreia do Norte nem a Ucrânia: era Português Suave, como se dizia então, mas sofria dos mesmos problemas de falta de informação, falta de paz, com abundância de misérias, polícias e censuras. Esse país foi derrubado por Abril e para o derrubar muita gente foi presa e morreu. O poeta diz que Abril se cumpriu. Não é verdade. Falta cumprir-se a segunda parte de Abril: o Abril das novas gerações. Portugal era um país sem democracia, sem liberdade, sem instrução, sem proteção, sem saúde, sem justiça, sem administração, sem nada. Foi preciso construir tudo isso. E para construir esse grande projeto, era preciso gente que fosse capaz de dar respostas, que soubesse construir em liberdade, respeitando as liberdades dos outros. Como se constrói um tão grande projecto se não sabíamos como? Diz-se que quem não tem cão caça com gato.
Como se Faz um País?
Construiu-se com o que se tinha. Quem soubesse ler e escrever era um construtor do que não tínhamos. Eram todos necessários, fosse no que fosse, para construir o que faltava. Os melhores e mais expeditos iam subindo. Entretanto, os que iam saindo das escolas com qualquer grau de ensino iam ocupando os lugares. A quarta classe, segundo ano, quinto ano, sétimo ano, eram graus académicos que abriam portas, fosse no que fosse. Os que saíam das duas ou três universidades eram pouquíssimos e não chegavam para as encomendas. Durante dez, quinze anos, os lugares que não existiam foram sendo criados e preenchidos com os escrivas e leitores que havia. O funcionalismo era pouco e os reformados muito menos. Quando saíam não se notava a escassez de pessoal porque a entrada de novos funcionários não deixava perceber os lugares deixados vagos e a preencher. A saúde, a justiça, as autarquias, o funcionalismo estatal ia sendo preenchido com gentes que sabiam ler e escrever, e que vinham dos anos cinquenta, sessenta, setenta. As únicas qualificações para preencher um lugar, era saber ler e escrever. Os poucos lugares não permitiam fazer a rotação de pessoal e a máquina saturou com as últimas admissões do início dos anos noventa.
A Geração Rasca
O mundo deu nomes às novas gerações: Baby Boomers, 1940-1960; Geração X, 1960-1980; Millennials, 1980-2000; e agora estamos em plena Geração Z, nascidos depois de 2000. Cada uma destas gerações internacionais beneficiou, governou e sofreu e não se encontrou, principalmente as últimas gerações, com as particularidades de cada crise. O mundo avança cada vez mais tecnológico, com pessoas cada vez mais perdidas no rumo a seguir. Portugal passou pelos mesmos problemas geracionais, que embora desfasados no tempo, vieram cruzar-se com os problemas geracionais de Abril. Depois de uma primeira fase de liberdade e massificação de qualidade duvidosa do ensino para criar com urgência os quadros técnicos que não tínhamos, vieram as crises geracionais. Os jovens, agora livres, alfabetizados, a escolaridade possível média e superior, viram as portas fechadas para os empregos civis e estatais. Foi então que os baptismos geracionais começaram a surgir, já em plena agonia do cavaquismo, com os mais diversos nomes, que refletiam a realidade do momento e dos mesmos problemas. A Geração Rasca, designação infeliz de um jornalista, surgiu em plena crise cavaquista, devido às exigências dos jovens que queriam um ensino mais democrático, abrangente, sem propinas, com qualidade. Conscientes de que as saídas profissionais começavam a ficar fechadas, exigiam respostas. Os meios retóricos de protesto eram próprios de uma juventude que começava a saber o que era viver em liberdade. E em liberdade protestavam com cartazes e vocábulos recorrendo ao mais puro vernáculo, razão por que foram rotulados de Geração Rasca. A Geração Rasca delimita a fronteira do Portugal submisso e acomodado com o Portugal das novas gerações letradas e sem horizontes. As gerações que se seguiram, incapazes de saltarem a barreira dos empregos, acharam que a sua geração não era rasca, mas uma Geração à Rasca. Muitos mais nomes se seguiram dentro da mesma geração ou gerações seguintes: Geração Perdida, Precária, 500 Euros, Que se Lixe a Troika, Bumerangue, Iô-Iô, Austeridade, Geração 2.0, Millennials, Geração Y, Geração Net, da Internet, para acabar na actual Geração Z, Geração iGeneration ou Geração Centennials.
Qualificados e Desempregados
Todas as gerações nascidas depois dos anos oitenta, com nomes sinónimos ou muito próximos, definem as mesmas gerações ou gerações seguintes. Todos se debateram e debatem com crises pontuais e sucessivas, apesar de altamente qualificados e preparados para a vida. Deparam-se com problemas no ensino, vêem as portas do futuro fechadas, sentem na pele o desemprego, a precariedade, as crises económicas, a frustração, a insegurança, a desigualdade social, a emigração, a falta de expectativas, incapacidade para aceder ao crédito ou arrendamento de habitação, impossibilidade de constituir família, gerar filhos. A Geração Rasca são os filhos dos homens de Abril. Nascidos entre 70 e 80, têm entre 44 e 54 anos. A Geração à Rasca, também chamada Bumerangue ou Iô-Iô, nascidos entre 80 e 90, têm entre 34 e 44 anos. A Geração Millennial ou Y, nascidos entre 90 e 2000, têm entre 24 e 44 anos. A Geração Z ou iGeneration, nascidos entre 2000 e 2012, têm entre 12 e 24 anos. Foi e são estas gerações que tiveram a sorte e o azar de levar com um Abril que lhe tapou as portas de acesso aos empregos. Estas gerações malditas tiveram uma deficiente formação académica nos anos da massificação do ensino médio e universitário, levaram com as ondas progressivas das crises do FMI, de 77 e 83, viram a qualidade do ensino a melhorar e competir com o que de melhor se fazia fora, apanharam com a recessão de 2008, levaram com a Troika de 2011 a 2014, apanharam com a Covid e levaram com as duas Guerras terroristas e genocidas. Se pensarmos que a Geração à Rasca passou por tudo isto, com as portas do funcionalismo fechadas e as empresas a servirem-se deles com vencimentos baixos e trabalhos precários, somos obrigados a reconhecer que nunca tiveram a oportunidade para agarrar um qualquer emprego, ter uma carreira em qualquer função, nem que fossem doutores ou mestres e fizessem carreira na limpeza de latrinas. Apesar das qualificações que tinham, só lhes restavam dois caminhos: ser caixa de um Centro Comercial ou backoffice de uma empresa prestadora de serviços, ou emigrarem.
O Futuro das Gerações
Estudos sociais e de âmbito universitário dizem que na Troika de 2011-2014 o desemprego jovem era de cerca de 42%, 485000 portugueses emigraram, muitos mais foram aconselhados a emigrarem pelos poderes de então, 332000 empregos foram destruídos. Era uma geração, e é, mesmo à rasca. Para agravar ainda mais, quando a economia estava num processo de arranque e acomodação, à procura de captar a muita disponibilidade de mão de obra qualificada que havia, surge a Covid e mais um período de penalização, principalmente para os jovens. Os homens de Abril, de pedra e cal nos seus empregos, envelheciam em segurança. Acabada a Covid, surgem as guerras. As Gerações à Rasca, Iô-Iô, Que se Lixe a Troika, os Millennials, e agora a Z, a entrar no mercado de trabalho, nunca tiveram os partidos da governação do lado deles, nunca lhes deram a oportunidade de ser gente. Um país sem jovens nos empregos e lugares de decisão não se desenvolve. Descrentes do país e dos políticos velhos e caducos: não votam. Portugal, com os jovens mais bem preparados e qualificados de sempre, não foi capaz de arranjar uma saída para milhares de desempregados e emigrados. A Geração Iô-Iô ou Bumerangue é uma geração que sai e entra, sai e entra, da casa dos pais, à medida que se empregam e desempregam dos empregos precários, com vencimentos da ordem dos 500 Euros, agora um pouco mais. Sem saídas para as suas vidas pessoais, amorosas e profissionais, sentem-se frustrados e com os futuros roubados. Esta geração deu origem à Geração Sanduíche: os pais das gerações cerceadas estavam emparedados entre as ajudas que prestam aos pais, sem e com pensões baixas, e os filhos desempregados. Os jovens que nasceram depois de 1980 queixam-se, e com razão, que não tiveram as mesmas oportunidades dos jovens de antes. Os que nasceram e estudaram antes de oitenta são médicos, engenheiros, advogados... vivem alegres e progridem felizes nas suas carreiras sem grandes problemas. Os nascidos depois de 1980 marcam a fronteira do pleno emprego de antes e o desemprego do depois. A Geração Millennial, com qualificações que superam as demais, foi a primeira a crescer com as comunicações e a net, onde encontraram as potencialidades que ambas ofereciam. No entanto, à semelhança da Geração à Rasca, também não tem uma vida fácil. Pela primeira vez na história, os jovens mais bem preparados e qualificados de sempre foram incapazes de criar riqueza ou superar a riqueza dos pais. A Geração Z nasceu e cresceu com as tecnologias digitais e as redes sociais. É uma geração altamente eficiente com os meios digitais, entra diretamente na Inteligência Artificial, e apesar dos problemas comuns aos das gerações anteriores, suas companheiras de rumo, vai ser ela, se a deixarem, que vai modelar o mundo que somos.
As Falhas de Abril
Abril 2.0 terá de ser feito, forçosamente, pela gente que viu o futuro barrado pelos homens de Abril, finalmente, de saída. Vão largar os seus lugares da mesma maneira que os tomaram: de rompante e aos milhares. O país e os homens que fizeram Abril, mais reactivos que proactivos, não souberam renovar os quadros estatais e civis ao longo dos anos, para aproveitar das elevadas qualificações dos jovens, que formaram, e proceder à continuidade dos serviços de uma forma harmoniosa e sem sobressaltos nas estruturas estatais. Vamos todos sofrer com a falta de previsão, para o futuro, que os homens de abril não conseguiram prever. A educação, a saúde, a administração, a justiça, vão sofrer com a falta de planeamento político. Foi essa falta de visão, de planeamento de projectos de longo prazo que nos trouxe ao impasse em que nos encontramos. Temos políticas caducas que não zelaram pelos cidadãos. A maior riqueza que o país tinha, deixou-a fugir ou manteve-a desempregada, com uma enorme carga social para todos. Pagamos e não recebemos. Não por culpa deles, mas nossa. Estas últimas eleições, que podiam ter sido a última oportunidade para nos reconciliarmos com os jovens, perdeu-se. Se assistirmos a desequilíbrios sociais conduzidos pela juventude, não nos devemos admirar. As reivindicações saíram à rua, muitas delas, justíssimas; muitas delas, corporativas. Estas, em defesa das mordomias. Os políticos, em vez de trazerem gente nova para a lida, trouxeram gente velha e revelha, ressabiada com a vida e com eles próprios. Teimam em falar do alto de uma cátedra, como se fossem gente ilustre e grande, quando o que fizeram foi enterrar o país e cortar as pernas aos jovens. Gente idosa, com ideias velhas e passadiças, mais valia ficar no seu canto em vez de abrir a boca. Não consigo perceber porque não foram abordadas nas campanhas temas que dizem respeito ao futuro de todos. Os jovens e as mulheres falharam a presença nos grandes partidos. Apesar das novas lideranças, houve mais ideias velhas que novas.
Gerações Perdidas
Quando ouço em conversas de café, entre amigos e familiares, pequenos empresários e afins, queixarem-se dos jovens que não trabalham porque não querem, não procuram, são preguiçosos e acomodados, ou que vivem à custa dos pais, é uma injustiça que lhes fazem e não prestigia os homens de Abril. Não consigo perceber os argumentos de gente boa que trabalhou em dois, três empregos, para justificar a riqueza conseguida. Dói-me saber que uma ínfima minoria, justamente bem-sucedida, seja prisioneira da vida difícil que teve. Fico doente quando atribuem à corrida de emprego para emprego a justificação do seu sucesso e riqueza obtida. Quando penso nisso, penso numa sociedade mais propensa à condenação fácil do que a criar condições para introduzir os jovens nos caminhos do futuro de todos nós. Nunca tive dois empregos, mas trabalhei muito e muitas vezes adormeci sem jantar nos bancos noturnos universitários. Os meus padecimentos não me dão o direito de descarregar nos jovens o que passei por trabalhar e estudar. A ambição e o sucesso, mesmo dos que tiveram dois e três empregos, pode servir de exemplo, não deve é servir como arma de arremesso aos jovens, condenando-os por não fazerem o mesmo. E mesmo que o fizessem, os vencimentos baixos não os deixava. Isso não é uma sociedade justa e equilibrada. Não serve de justificação dizer que os emigrantes entram no país porque os nossos jovens não querem trabalhar. Querem e vão agarrando o que encontram. A formação deles também assusta os empregadores que não os querem. Ou querem-nos para os explorarem. Quando se diz que um jovem com um doutoramento ou mestrado universitário não quer trabalhar porque não quer servir cafés e sanduiches à mesa de um turista, devia envergonhar-nos. Um doutorado a servir cafés ou a registar massa e arroz mostra-nos a exata medida do nosso falhanço como povo. Ainda mais aos que defendem que não querem trabalhar, só porque o país está cheio de emigrantes. Ainda bem que os temos. Oxalá que venham muitos mais. Precisamos deles. Um país que tem feito os possíveis para puxar o ordenado mínimo nacional para cima, e é pouco, não tem feito nada para criar emprego qualificado. Mas conseguiu o feito notável de colar o ordenado mínimo ao ordenado médio. Perde o país, ganham as empresas com gente altamente qualificada a receber pouco mais de mil euros. E ganham os países com emigrantes cultos e bem preparados, sem que tivessem investido um euro na sua formação. Investimos nós que somos um país rico para oferecer os nossos melhores a quem precisa deles. A Europa, e não só, agradece.
Abril 2.0
Não sou saudosista, mas sou obrigado a reconhecer que a política salazarista estava muito mais avançada do que nós na educação e emprego dos jovens. Por isso mesmo, nos anos 60 criou em todo o território nacional uma rede de escolas industriais e comerciais para criar condições de empregabilidade para os jovens. Eu beneficiei da rede. Apesar da elevada percentagem de analfabetismos, seria bom, que neste aspecto, os governos de Abril imitassem o salazarismo, única coisa boa criada por essa gente, e percebessem que não se modernizam países sem jovens felizes, sem condições para comprarem casas e formarem famílias. Veremos o que nos reserva este governo e o futuro. Praza aos jovens que tenham a força anímica para avançar com a segunda fase do 25 de Abril, Abril 2.0. E oxalá que não se deixem capturar pelas forças corporativas, que a pretexto da defesa da classe, do que lhes foi roubado, dos baixos vencimentos, esqueceram-se do que foi roubado aos demais, esqueceram-se de defender os direitos dos jovens, esqueceram-se das gerações à rasca, das gerações 500 euros, das gerações precárias, das gerações Bumerangue, das gerações perdidas. Sem jovens, não pode haver direitos para quem quer que seja, nem os merecemos. Devemos cuidar dos velhos, mas se não cuidamos dos jovens...



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