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Cartas

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 16 de set.
  • 4 min de leitura

Este excerto do meu livro, “Cartas” — feito em verso livre, sem rima e métrica —, nasceu há muitos anos, a partir de um projeto de escrita, em prosa, para um livro. Foi a primeira tentativa para escrita de grande fôlego. Depois de umas quinze ou vinte páginas, fui incapaz de prosseguir por falta de jeito. Desisti. Sem saber, e não sei, ler e escrever poesia, tentei a forma de verso. Embalado por esta experiência, acabei por escrever o meu primeiro livro, “Cartas”. Durante muitos anos, esteve escondido no baú das memórias.



Envelopes que guardam as palavras que viajam.
Envelopes que guardam as palavras que viajam.


Ao longo da minha vida, nos momentos de crise, revisitava a minha “caneta” para me pacificar. Como escrevia sem qualquer intenção, muito do que produzia acabava, invariavelmente, no lixo. Por vezes, um ou outro escrito escapulia-se, sem que o soubesse, para outros olhos. Eram olhos benfazejos que me assopravam aos ouvidos: tens jeito e escreves por metáforas, porque não escreves mais? Ria-me e passava à frente sem pensar no assunto. Quando me reformei, tinha várias vias para preencher os meus dias. Entre elas, tinha os olhos e as falas a martelarem-me a cabeça: porque não escreves mais? Comecei a ensaiar a escrita mais encorpada. Outro dos meus prazeres passa pelo período dos descobrimentos. Experimentei escrever sobre esse tempo. Dessa experiência, resultaram alguns livros. Oportunamente, vou regressar a eles. Acho que merecem abrir os olhos, viver e ver a luz do dia.

Há meia dúzia de anos, revisitei o baú e dei de caras com as “Cartas”, essa longínqua tentativa de escrever em prosa, que acabou por se transformar em forma de verso livre atabalhoado. Gostei do que vi e li. Foi um embalo que me empurrou para a publicação. Como já tinha adquirido alguma experiência nas muitas páginas dos descobrimentos, abalancei-me para escrever e publicar o meu primeiro livro. A minha estreia foi com “Um Comboio de Vidas Suspensas”. Depois o segundo. A seguir o terceiro. Finalmente, ganhei coragem para publicar as “Cartas”.

Como surgiu este gosto pela escrita? Para além de ter tido a sorte de ser modelado por bons mestres escolares, que me conduziram a mão para os cadernos de duas linhas e redações; tive a contribuição analfabética do meu pai, que me punha a ler jornais; das cartas que escrevia para os iletrados; e por último, a minha verdadeira oficina de escrita foram as inúmeras cartas que escrevia diariamente durante dois anos de Angola.

O excerto de as “Cartas” são o resultado de dias difíceis. Na realidade, este foi, verdadeiramente, o primeiro livro que escrevi. As cartas, as que escrevi e recebi durante dois anos, o tempo acabou por lhes dar sumiço. Sem elas e sem a jovem que me estimulou, deu esperança e ajudou a escrevê-las, a minha vida e o homem que sou seriam completamente diferentes. As cartas ajudaram-me a conservar a sanidade e a ver muito mais além do que um dia de cada vez.

Por isso mesmo, não me canso de agradecer às mulheres, namoradas e madrinhas de guerra que nos ajudaram, a todos, a suavizar os dias de dois anos de guerra. Sem vós, muitos de nós teriam ficado por lá. Vocês, também jovens sofredoras, eram a candeia que nos atraía, à semelhança dos insetos que esvoaçam em torno da luz. Infelizmente, para muitos e muitas, a guerra ainda continua.

As “Cartas” é a minha homenagem a todas vós.

Bem hajam por nos terem dado Esperança.


Capa do Livro "Cartas"
Capa do Livro "Cartas"

A ti,

minha Deusa,

minha Alma,

minha Vida,

no silêncio noturno da minha camarata

de três camas de ferro frio insensível,

no abraço do meu travesseiro,

sem a tepidez do teu hálito,

confessava a minha raiva,

as minhas frustrações,

os meus lamentos,

os meus ais,

as minhas dolorosas saudades de ti,

as esperanças do meu incerto porvir.


Tantas vezes me perguntei

como era possível encontrar palavras

em sítio cercado por arame farpado e mato,

onde dificilmente encontrava uma,

mas tropeçava em panóplia de armas

na terra amaldiçoada pelo Génio Criador.


Palavras que deviam germinar,

vivas, impetuosas, nas largas linhas,

sem serem cuidadas nem pensadas.


Palavras selvagens que se deixavam

amansar pelo correr da pena

como um fluido fio fino imanente

que brotavam da alma

subiam ao coração

bailavam na cabeça

desciam pelo braço

saíam pelos dedos

entravam na bic

rolavam na esfera

deslizavam pelo papel

para depois galoparem aos tropeções

para a alma distante

que carecia da alma que as vertia.


Noite após noite, deixava que a bic

se animasse a fazer o seu caminho

até se sentir esgotada de tanto andar.

Feliz, nunca se cansava!


Como guardião tirano,

obrigava-a a deter-se

porque quando te cortejava,

era amante viciosa:

queria mais um pouco.

Tinha ciúmes dela!


Sem ti em mim,

foçava nos trilhos da ascese:

não me elevava

nem me iluminava.


Escurecia cada vez mais,

ficava bruto,

estoirava de estupidez.

Era animal e fera ferina

na instável via dolorosa.



Livro
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