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Alto Alentejo

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 15 de jul.
  • 6 min de leitura


Um povo que aprendeu a cantar com dolência e palavras simples, do tamanho da planície alentejana, “Vamos lá saindo / por esses campos fora / que a manhã vem vindo / dos lados da aurora”, é um povo que merece que o país cuide melhor dele.



4 burros mansos encontrados no Alto Alentejo
4 burros mansos encontrados no Alto Alentejo


A segunda vez que fui ao Alentejo era um jovem assustado com um futuro incerto. Nessa altura, tinha acabado de fazer a recruta nas Caldas da Rainha e fui colocado em Tavira para tirar a especialidade. Conhecia mais ou menos o país, principalmente o litoral, mas também as terras para lá do Marão e zona central das beiras montanhosas.

Era um tempo de estradas sinuosas e de má qualidade, comboios lentos e fumarentos que estavam sempre a beber água, carreiros de pé-posto entre aldeias, caminhos mais largos, de terra batida, para circulação de carroças e animais. Mais para o interior, e nas zonas montanhosas, ouviam-se os uivos dos lobos junto de cidades como Bragança. Por vezes atreviam-se a circular ou a atravessar estradas. Uma vez encontrei uma matilha entre Castro Daire e Viseu. Lindos!

Apesar de todas as dificuldades de circulação, como pendura, de comboio ou camioneta ronceira, tive a oportunidade de andar pelo país a norte do Tejo. Até uma ou outra aldeia, que para lá se chegar, tinha de se andar quilómetros a pé depois do último ponto onde o carro chegava. Quanto mais para norte e centro, mais fresco e verde, mais chuvoso e enevoado, mais povoado e casario agrupado (as vilas e aldeias eram todas próximas umas das outras), mais montanhoso e agreste.

Em 69, com dezanove anos, apanhei o comboio (um barco) no terreiro do paço, com transbordo no Barreiro para um comboio a sério. Foi o primeiro contacto, bastante negativo, que tive à entrada do Alentejo, às portas de Lisboa. Naquele tempo, bastava atravessar o Tejo para estar no Alentejo.

Conhecia por fotos e leituras o smog de Londres e de outros locais industriais da Europa. Mas desconhecia por completo o smog do Barreiro. Casas negras, todas da mesma cor, cheiro intenso a produtos químicos, com o enxofre a embrulhar tudo o que eram cheiros agradáveis, se os houvesse. Os telhados eram escuros e da mesma cor. A acidez do ar e das chuvas corroía os sistemas respiratórios e a envolvência. Até o viço das árvores raquíticas. A visibilidade do horizonte e do céu teria, talvez, pouco mais de cem metros...

Felizmente, e depois de percorrer no comboio uns quilómetros no interior de um túnel de smog e um paredão de casas negras, de um lado e outro da linha, comecei a entrar em espaço mais aberto, soalheiro e respirável.

Esta primeira viagem que fiz até Évora resultou num misto de compaixão e tristeza por ver em que estado viviam e sobreviviam os operários fabris da CUF e todas as outras indústrias poluentes do imenso espaço industrial do Barreiro. Mais tarde, vim a saber que o Barreiro abrigava dentro de si grande parte dos trabalhadores rurais miseráveis que fugiam do Alentejo em busca de uma vida melhor. Saíam dos espaços respiráveis, abertos e soalheiros, dos horizontes e poentes sem fim, dos céus noturnos e brilhantes, para uma cidade onde se vivia em casas sem cor e se respirava mal, para viverem debaixo de um céu baixo, abafado, sem sol e estrelas, e onde as chaminés do carvão e produtos químicos bufavam fumo negro e malcheiroso dia e noite. Até a siderurgia de Paio Pires dava uma ajudinha ao smog do Barreiro. Se o Barreiro me marcou negativamente e me deu vontade de fugir para longe de uma terra malcheirosa e sem cor, o restante da viagem surpreendeu-me pelo contraste marcante com a região a norte do Tejo. E nem era preciso subir muito, bastava ir a Alverca ou Vila Franca.

Quando fui para Tavira, foi um intenso deambular pelo Alentejo, durante seis meses, entre Lisboa e Tavira. Por felicidade, e como tive a sorte de pernoitar fora do CISMI, partilhava moradia e vizinhança com outros jovens de norte a sul do país, entre eles, dois alentejanos, um de Mora, outro de Aljustrel. As viagens e estes dois alentejanos ensinaram-me a ver o Alentejo e as suas gentes. O ondulado das terras a perder de vista, juntamente com a suave ondulação aloirada do trigo, a azinheira ou chaparro solitário no meio de algures, o amanhecer e o entardecer alentejano conquistaram-me definitivamente e nunca mais deixei de gostar do Alentejo. Eu, que era um amante das terras do norte, de repente, tomei conhecimento que ainda tinha espaço para me perder de amores por uma terra que, se não fosse tão sacrificada e causticada pelas herdades e GNRs, podia ser uma terra de gente feliz e alegre, sem necessidade de fugir para os Barreiros deste país.

Com o Aljustrel e o Mora aprendi que os falares alentejanos acompanham a ondulação da planície, o vagueio tecido pela cresta. Nas idas e vindas, via ranchos de homens e mulheres colados à terra para a amanhar, lançar a semente com a mão medida ou dobrados na ceifa à mão. Com o sol gravado na pele, deixavam-se embalar pela modorra restauradora debaixo de uma larga e copada árvore solitária.

Se o Alentejo me cativou ainda antes da tropa, quando regressei do ultramar fui completamente capturado. Desta vez, e sempre que ia ao Alentejo, a minha alma sonhadora, não sofredora, de África, revia no Alentejo os grandes espaços das anharas sem fim, a terra crestada, o capim seco, a explosão das ervas coloridas às primeiras gotas caídas do céu. Quem tem saudades de África — e todos os que passaram por lá trazem consigo uma montanha russa de emoções que passam pelo amor à terra e as marcas do sacrifício pessoal e dos camaradas que deixaram —, não deixa de se sentir em casa quando está no Alentejo.

Mais uma vez o Alentejo não me desiludiu e cumpriu a sua missão: um amor à terra e aos espaços, e um arrepio frio de saudade irrecuperável.

Profissionalmente, em lazer e até com formações durante um ano em Beja, Já não sei quantas vezes passei pelo Alentejo, assim como pela região da Serra de São Mamede, Marvão e outras localidades. Sei que foram muitas. Há uns dias passei pelo Alto Alentejo. É mais fresco, menos soalheiro, mais arborizado. Até carvalhos e castanheiros tem com fartura. Pedregoso nos socalcos montanhosos. Chamar montanhas a esta região é uma provocação às montanhas das beiras e Trás os Montes. No entanto, à escala da planície, é um abcesso de respeito, de se lhe tirar o chapéu. Até água tem! Impensável, quando se pensa num Alentejo seco e árido.

Este Alentejo pregou-me mais uma partida. Para mim já não é nenhuma novidade: estou habituado às suas partidas. Para além de me pôr a pedalar em rail bike, em Marvão, mostrou-me, entre outras coisas, quatro raros burros mansos. Quando olharam para mim, quando lhes afaguei o focinho e atrás das orelhas, quando lhes senti o pelo áspero, quando vieram lamber-me a mão, não fui capaz de deixar de pensar na minha juventude. Nessa época, havia burros por todo o lado e carregavam que nem burros todo o tipo de coisas, desde o pão até ao mato. Naquele momento, veio-me à lembrança que de entre muitas coisas que estudei e memorizei, também soube que Portugal era um grande produtor europeu de gado asinino.

Rail bike em Marvão
Rail bike em Marvão

Fez-me bem esta passagem pelo Alto Alentejo. A companhia também ajudou e era excelente. Mas o melhor desta ida foi a montanha russa de emoções e sentimentos desencontrados. Não me canso de pensar e dizer que Portugal é uma joia encastrada na cauda da Europa. Os estrangeiros pagam muito para poderem desfrutar dela. Aproveitemos também nós do que melhor temos. E é tanto o que Portugal tem. E diversificado.

O Alto Alentejo, assim como todo o Alentejo, merecem uma visita. Apressem-se porque ainda há por lá algumas almas, poucas. Os nossos governos, que elegemos cegamente, fazem tudo para despovoarem o que de melhor temos. Se estas alminhas desaparecerem, desaparece uma grande cultura histórica que nos legou os seus cozinhados com sabores a ervas de cheiro, assim como os seus cantares dolentes e envolventes carregados de tristeza, trabalho, suor e sofrimento. E desaparecem os arruamentos limpos, as casas caiadas de branco com faixas azuis e amarelas. A agressividade climatérica do território moldou aquela gente sábia.


Os meus Livros
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