Ainda o Apagão
- Luis Manuel Silva
- 13 de mai.
- 6 min de leitura
O Apagão ibérico foi uma coisa estranha. De repente entrei numa máquina do tempo e fui transportado para séculos esquecidos. À semelhança de muitos, fui apanhado com as calças nas mãos.

Já por diversas vezes tinha pensado nesta realidade: falta de electricidade e comunicações. O mundo evoluiu, modernizou-se, deu-nos conforto, aligeirou-nos o trabalho e fomo-nos adaptando às incontáveis benesses que a electricidade nos oferece, às facilidades de comunicação e locomoção. Ainda em vida, perdemos a realidade do que tínhamos ontem e damos por adquirido o que teremos amanhã. Os avós de hoje são uma geração de fronteira. Antes dos finais do século xix, a vida era ligeiramente melhor do que na centúria anterior. A invenção de um qualquer instrumento que gerasse riqueza ou aligeirasse o trabalho era, apenas, localmente conhecida; raramente transmitida às comunidades vizinhas; impensável divulgar pelos grandes espaços populacionais dispersos, ainda que próximos. Poderia haver uma dose de secretismo para manter em segurança um instrumento de grande valor, mas os segredos só serão secretos durante curtos períodos. Aquilo que é o segredo de um, pouco tempo depois é do conhecimento de meia dúzia, depois de uma centena, por fim das comunidades vizinhas. Os viajantes ocasionais, acidentais ou mercadores eram arquivos privilegiadas de informação que iam transmitindo conhecimentos por onde passavam. As benesses e os segredos passavam do âmbito restrito para um âmbito mais universal. Este foi um processo de décadas, centúrias e milénios, principalmente devido à falta de comunicação entre as várias comunidades. Muitos nem estavam interessados em esconder: pensavam na humanidade e queriam divulgar. Sem transportes e caminhos seguros, era quase impossível comunicar.
Nos séculos passados, as principais fontes de divulgação do conhecimento foram as comunidades religiosas de todos os credos. Embora com altos e baixos, foram elas que moldaram o conhecimento e a moral em todas as sociedades de todos os continentes. Praticaram uns quantos disparates, muitas mais coisas boas fizeram. É assim que caminham as sociedades, nas margens do bem e do mal, sempre em frente para criar um mundo melhor.
Vem isto a propósito da mudança lenta do conhecimento e das sociedades ao longo dos séculos. O século xx resolveu dar uma machadada na estagnação das sociedades. Começou com o vapor, depois com a electricidade. As casas começaram a fazer da noite dia; as fábricas substituíram o vapor por motores eléctricos; a mão de obra, numa primeira fase, ferozmente escravizada pelo vapor e electricidade, começou a sentir algum alívio no trabalho; as fábricas conseguiram encontrar soluções para nos deslocarmos durante centenas, milhares de quilómetros; começamos a voar como os pássaros; a mulher doméstica, guardiã da casa, viu a vida facilitada com a introdução dos electrodomésticos. Libertadas pelas máquinas caseiras, e a pílula depois de meado o século, passaram a ter mais tempo disponível. Foi então que perceberam que o mundo precisava delas. Essa nova forma de o ver, sem ser através da janela da cozinha ou do tanque da roupa suja, impeliu-as para a conquista de novos espaços. Com elas surgiu uma nova forma de pensamento e transformação das sociedades.
Depois da revolução do vapor, da electricidade, das ondas rádio, da conquista dos caminhos marítimos, terrestres e aéreos, foi a vez de mais uma revolução: a do transístor. Foi ele que deu início à electrónica analógica que está na origem do digital, dos computadores, da internet, das comunicações longínquas, das máquinas que se governam por elas próprias e têm a capacidade para aprender e melhorar a vida de todos nós. Foi tudo isto que a electricidade nos deu. Foi tudo isto que o apagão nos tirou e devolveu por umas horas à Idade Média.

Nas primeiras notícias desencontradas e do boca à boca, falava-se dos russos que puseram a Europa às escuras; depois deixamos de poder falar ao telemóvel, o trânsito ficou caótico e eu, apanhado com o carro na reserva, tentei abastecer em uma bomba com dezenas de automobilistas sentados dentro dos carros, lancis dos passeios, um degrau de escadas. Arrisquei e consegui chegar a casa na esperança de que Putin não me tirasse o pouco gasóleo do carro. Sem electricidade, arrisquei mais uma vez: fui ao restaurante e consegui uma refeição. A sorte caminhava comigo. Gastei os últimos cêntimos que tinha. E agora? que farei sem dinheiro? E depois de esgotar os litros de água que a sorte me ajudou a encher tachos, panelas, bidons e eu sei lá que mais, que farei? Moro próximo do Tejo, um rio com muita água, ainda, mas com pouco préstimo para beber. O resto da tarde foi um desastre. Sem rádio, sem electricidade, sem notícias, sem televisão, voltei a perguntar: que fazer? Esperar. O pior estava para vir: a noite. Felizmente havia uma vela para nos velar. De repente, senti saudades do candeeiro a petróleo, esse instrumento maravilhoso com chaminé de vidro farrusco e ajuste de torcida para dar um pouco mais de luz, se possível, sem cheirinho a petróleo. Mas como iluminar um espaço escuro, fumado por candeias a petróleo, uma lareira sempre a fumar com panelas de trempe em cima das brasas e do fumo? Deixemos o passado e aproveitemos o momento: felizmente que o céu de Lisboa estava mais vivo e estrelado como nunca o vi.
Às 23h10 chegou a luz. Acabou-se a escuridão. Podemos regressar à nossa vida eléctrica e perguntar à família como estão, se a noite já se fez dia. Foi um alívio. Por vezes é preciso confrontar a nossa fragilidade para dar algum sentido à vida, agradecer a todos quantos contribuíram para termos uma vida mais confortável.
Foi estranho, mas ficou uma conclusão: temos de estar preparados para um desastre, seja por falta de luz, por um sismo, por qualquer outro acontecimento. Para mim, nada disto foi estranho e devia estar preparado. Participei na discussão e alguns ensaios de catástrofes e sei perfeitamente que este tipo de acontecimentos podem surgir em qualquer altura. Por tal motivo, devia/devemos ter um pequeno armazém de produtos imperecíveis de primeira necessidade. À frente de todos, um rádio para não ficarmos desligados do que se passa no mundo. O século xxi já nos ensinou que estamos perante desastres controlados ou descontrolados. Não podemos descansar e confiar na sorte: foi o subprime, a troika, a Covid, as guerras da Ucrânia e Gaza. Agora estamos confrontados com mais um acontecimento: o sonho americano transformou-se num pesadelo. Sabemos como começou, ninguém sabe como vai acabar.
Confrontados com acontecimentos destes, é importante termos um governo visível que nos acalme, dê esperança. Não quero que me diga que estivemos à altura dos acontecimentos: quero que me diga o que fazer para que não nos comportemos como uma turba de carneiros cegos e desordeiros desgovernados. Foram horas, se fossem dias, como se dizia no boca a boca, teria acontecido o pior. Precisamos de saber o que se passa na realidade, logo nos primeiros momentos, para que saibamos o que fazer, como proceder. Esta a principal missão do governo. É ridículo ouvir e pensar que o meu governo se preocupou com o gerador e colocou os seus topos de gama ao serviço do transporte de combustível em vez de ir para uma rádio falar connosco. Essa não é a sua missão. Nem outras tantas atoardas sobre o apoio à rede eléctrica. Não esqueço que Zelensky veio para a rua de noite enquanto as bombas caíam por todo o lado. Nesse momento de terror e de incerteza, falou ao povo com uma postura calma e voz serena: Estamos todos aqui para o que der e vier. Não fugimos e vamos enfrentar o inimigo. — Acompanhado por alguns do seu governo, não pediu, disse ao que ia. A nação viu um guia: não só confiou como o seguiu. Depois daquelas palavras, sabiam o que fazer: defender a terra e as famílias.
No apagão não tivemos um governo. Também não esperava nem queria que fizesse o trabalho que compete aos técnicos. Ao fazer o que fez, se é que o fez, transportar combustível para um gerador, é passar um atestado de incompetência a um conjunto de profissionais vocacionados para acorrer e resolver problemas que estão longe da alçada do governo. Há diretores, engenheiros, gestores, técnicos com elevado sentido das responsabilidades, bem posicionados para resolver essas questões; há polícias, GNRs, gasolineiras, diretores e administradores com competências e conhecimentos para fazer o seu trabalho. Foi toda esta gente que foi ofendida pela voluntariedade dos carros governamentais a transportar combustível. Também não devemos esquecer que numa situação de catástrofe todos se solidarizam e ajudam no que for preciso. Se tiverem dúvidas, estejam atentos aos inúmeros desastres e à resposta da população quando tal acontece. As populações são as primeiras a reagirem.
Quero um governo que seja tecnicamente viável, solidariamente comprometido com as populações, que faça política de curto e longo prazo, dê continuidade aos projetos existentes, conceba novos, me tranquilize quando as catástrofes acontecem. É este o governo que quero, seja ele qual for. Não foi o caso. À semelhança do presidente americano, aquando do colapso das Torres Gémeas, o governo escondeu-se, apareceu tarde demais.

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