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Os Anos Empurram para a Frente e para Trás.

  • Foto do escritor: Luis Manuel Silva
    Luis Manuel Silva
  • 22 de mar. de 2024
  • 7 min de leitura


Uma Janela para o Passado
As memórias da Juventude



O Discurso

É bem verdade que os anos empurram para a frente. Lá chegados, devolvem-nos os de trás.

Vem isto a propósito do discurso de António Costa, no Porto. Durante a campanha eleitoral, fiz por acompanhar de perto os debates dos partidos com assento na Assembleia da República. Pelo menos, os que considerava fracturantes. Não vou entrar em pormenores, muito menos em considerações ideológicas, mas acho que tenho liberdade para dizer duas coisas: do que menos gostei, foram dos debates do André Ventura; do que mais gostei, foi do discurso de António Costa, no Porto. Não me vou pronunciar sobre as ideologias de cada partido. Se há algo que prezo, é a liberdade que as pessoas têm para votar. A liberdade é um chicote que nos obriga a conhecer os programas dos partidos, o que cada um se propõe fazer. Com o voto decidimos, sabendo, de antemão, que condicionamos a vida de todos. Não gostei de Ventura porque não falava, não deixava de falar e não disse ao que ia de uma forma convincente. E fico-me por aqui. Gostei de Costa, e, aqui, não vou entrar na veracidade, ou não, do discurso. Digo apenas que foi o discurso de um homem iluminado, culto, flexível. Acima de tudo, era convincente e acreditava no que dizia. Ele ou partido cometeu erros: pagou por eles. E tudo leva a crer que a espada que lhe puseram sobre a cabeça não passa de um fogo fátuo. Do que, verdadeiramente, gostei no discurso, e que me levou a este escrito, foi o #teatrodosjornais, do tempo que tinha para os ler, das horas que dedicava ao estudo. Foi esta disponibilidade de tempo que me trouxe ao assunto deste escrito.


A Reforma

Já me reformei há alguns anos e, para ser sincero, nunca me assustaram os caminhos da reforma. Tive colegas que ao fim de alguns meses, um ou dois anos, se reformaram da vida. Nunca imaginei que tal acontecesse. Acho que a reforma deve ser preparada com antecedência, mas nunca me preocupei com isso. Ao longo da minha vida fui forçado a aprender a não me preocupar com o dia seguinte. Também nunca tive problemas em mudar de agulha, fosse em que circunstâncias fosse. Chegado ao dia um de abril, dia em que me reformei, não estranhei a falta do levantar cedo, do caminho do trabalho, da tensão de cada um dos dias, e dei-me temporariamente a prazer, como disse uma #vicentina. Tinha alguns caminhos pela frente que me davam gozo, mas havia um no meu inconsciente que me atormentava. Escrever. A escrita, para mim, mais do que mostrar as minhas habilidades — saberá Deus se valem assim tanto! — era uma forma de liberdade e preenchimento. Desde muito cedo que tive este bichinho e havia sempre alguém, consciente ou inconsciente, que alimentava o bicho. Já disse que foi um analfabeto, o meu pai, e um semianalfabeto, a minha mãe, os primeiros a acarrearem as letras que juntava. Mais tarde, fui encarreirado pelas minhas saudosas mestras; depois pelas cartas que lia e escrevia aos analfabetos, e por aí fora. Com muitos e bons professores que tive, padres e não só, mas também com o hilariante benfiquista, José Pedro Machado, não havia como falhar. Do que aprendi, o que fica para a história é o que se deixa, não o que levamos connosco.

Neste tempo que a reforma me tem dado, à semelhança de Costa — foi ele que me deu a ideia no discurso do Porto —, tive tempo para pensar em pessoas que plantaram letras no quintal que sou.


Os Campos Novos

Ninguém saberá, à excepção de um ou outro Matusalém de Guimarães, onde eram os Campos Novos. Para quem esteja familiarizado com o parque desportivo do Vitório de Guimarães, os Campos Novos ficavam junto à Estrada 101, imediatamente abaixo da curva da estrada. Foi neste espaço circunscrito pela Rua da Unidade Vimaranense, atravessando os recintos desportivos, até às ruínas e casas anexas da Azenha, que dei os primeiros passos nas letras. Dos Campos Novos até à #Azenha havia três quintas: os Campos Novos; a quinta do Pé de Cão, da Quininha e do Toninho, adjacente à minha; depois a quinta do Jeromeninho, um nome que nunca fui capaz de pronunciar — ainda hoje não tenho a certeza de como se diminui carinhosamente o Jerónimo; e, finalmente, as casas e a quinta da Azenha. Na azenha, um pouco mais abaixo, havia um grande portal senhorial, e depois dele, a caminho da Costa, ficava a quinta dos Mochos — espero que me perdoem. Há cinco anos, fui revisitar estes espaços, que não existem, com excepção das casas e ruínas da Azenha.


Lavradores amadores

Porquê esta viagem saudosista? Porque fui conduzido por Costa: o tal excesso de tempo, de que falou. E foi precisamente por isso, que os anos me empurraram para trás e me levaram até junto das pessoas que mais diretamente me influenciaram no ajuntamento das letras. Nesse tempo, não havia exploração infantil e os miúdos gostavam de imitar os mais crescidos, nas mais diversas atividades caseiras. Sem sermos lavradores, vivíamos numa quinta cuidada por jornaleiros que trabalhavam à jorna. No entanto, os trabalhos menores eram feitos pelos meus pais, de acordo com a disponibilidade dele, já que a sua principal atividade era trabalhos de carpintaria. Esta atividade dava-lhe grande margem de manobra: trocava os trabalhos de lavoura por trabalhos em madeira com os lavradores vizinhos. Em termos práticos, a boa vizinhança, a afabilidade dos meus pais, a disponibilidade para algum trabalho de serrar, aparelhar e pregar, a boa cozinha e a mesa farta da minha mãe, eram chamarizes para que um ou outro dos lavradores estivesse sempre disponível para os trabalhos de lavra: sementeiras, colheitas, vindimas, poda ou outros mais violentos. Não tínhamos gado, tirando uma ou outra turina para crescimento, engorda e venda, um ou outro porco. Os meus pais não gostavam de ter animais por ser uma prisão muito grande.


Maria

A Quininha tinha filhos e uma filha nova e casadoira, a Maria. Tinham gado, vacas e bois chifrudos, e os meus pais deixavam pastar o gado no nosso campo de baixo, mesmo junto da casa do Toninho. Nessas ocasiões, a Maria vinha deitar o gado ao campo e trazia sempre com ela uns livrinhos com histórias da carochinha, de fadas, bruxas e outras. Enquanto deixava os bois à vontade no campo, chamava-me para junto de si e lia-me as histórias. Creio que foi a primeira pessoa que me passou o gosto pela leitura. Quando levava o gado, deixava sempre uns livrinhos para ler: — Leva mais estes, se não souberes, a tua mãe que te explique. Os momentos que passava com Maria eram felizes, e creio que para ela, apesar de ser mais velha que eu. Mais tarde, soube que estava de namoro com um dos filhos dos da Azenha. Menina jovem, bonita, afável e filha de lavradores, andava feliz com os bordadinhos e lencinhos dela: — É para o meu conversado! Enquanto não casou, nunca deixou de levar o gado e trazer livrinhos com histórias de encantar #livroscomhistorias. Nunca soube como os arranjava! Quando não lia, contava. Tinha muito jeito e gostava de teatralizar as histórias: — Maria, conta mais uma historinha! Quando casou, creio que não tinha dezoito anos! Um bando de miúdos juntou-se à porta a gritar pelo samagaio. Nunca vi a distribuição do samagaio em mais lado nenhum senão em Guimarães. Era um ritual de noivos, padrinhos e convidados, habitualmente nos casamentos e batizados, que consistia no arremesso de punhados de moedas, amêndoas e confeitos de muitas cores para um bando de miúdos, que se atropelavam entre si, para apanhar o maior número possível.


Trabalhos de Casa

Não me posso esquecer dos #Mochos. Um dos filhos, o Manel Mocho, morava numa casa da quinta da Azenha, ao lado de um moinho de água que vinha da presa da Azenha. Era da minha idade e vivia um pouco afastado de mim. Os miúdos do bairro viviam mais próximo, mas era preciso atravessar a estrada. Os carros, nessa altura, eram poucos e lentos, mas a minha mãe não me deixava ir para o bairro. Quando saíamos da escola, inicialmente uma casa de habitação do bairro, antes de construírem a nova, mais afastada e moderna, vinha comigo até aos Campos Novos, e ficávamos a estudar e a fazer os trabalhos de casa. Depois, com os livros dentro da sacola de pano, cruzada no peito, ia por ali abaixo a correr, passava as quintas e a casa da Azenha, e se a porta de homem do portal estivesse fechada, saltava por cima do muro para uma poldra na água, e entrava em casa, mesmo ao lado. O Mocho, filho de lavradores, tinha um trabalho mais duro que eu: logo que chegava a casa, tinha sempre que fazer: cuidar dos animais, apanhar erva, fazer uma monda ou arrancar ervas daninhas — vida de lavrador. Quando não fazia os trabalhos, por falta de tempo, era eu que os fazia ou ajudava a fazê-los. Muitas vezes, forçava-me a ir a casa dele: — Se vieres, a minha mãe não me dá trabalho. E não dava. Sentávamos a um canto de um espaço que funcionava como cozinha, sala de jantar e sala de estar, e estudávamos, ou fingíamos que estudávamos. Tive sorte com este meu colega e amigo de escola: era inteligente e aprendia bem.


Celta ou Visigodo? 

Os anos que me foram empurrando para a frente perderam o rasto do Mocho, mas nunca me esqueci dele. Era russo, olhos vivazes e azuis, amigo da brincadeira e de fazer partidas. Às vezes, e tantos anos depois, dou comigo a pensar nele como um perfeito exemplar celta, quem sabe, um visigodo! Demo-nos sempre bem. Tanto a minha mãe como a mãe dele gostavam de nós e estavam sempre a apaparicar-nos. Quando fiz a tal romagem de saudade aos Campos Novos e Azenha, perguntei a um homem que por ali andava, se se lembrava ou conhecia os Mochos. O Manel era vivo e morava algures, sem precisar onde.


António Costa, sem o saber, com aquela exposição de quem não tinha nada para fazer, empurrou-me lá para trás, até aos Campos Novos, ao Toninho e Quininha de Pé de Cão, à sua filha Maria, ao Jeromeninho e à Azenha, até acabar, finalmente, no meu saudoso amigo Manel Mocho.



 
 
 

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